Foto: Felipe Werneck/Ibama

Sob a luz de refletores improvisados na caçamba de uma caminhonete, um grupo de cerca de 30 pessoas se reunia para tratar de eleições numa vila garimpeira instalada no coração da floresta amazônica, em Itaituba (PA), a 1.200 quilômetros da capital Belém, no dia 14 de setembro. Ao microfone, uma voz elevava o tom de cobrança a autoridades. “Já era para ter patrolado (nivelado) todas essas ruas. Era para ter caminhão-pipa bancado pela prefeitura, que tem recursos”, discursou Heverton Soares, conhecido como Grota. A faceta de líder comunitário, porém, esconde a real identidade do garimpeiro investigado pela Polícia Federal (PF) sob suspeita de ligações com o “narcogarimpo”, associação de facções criminosas com donos de mineradoras para lavar dinheiro do tráfico de drogas por meio da venda de ouro. O seu objetivo no ato político era pedir votos ao candidato a prefeito Ivan D’Almeida (Podemos), dono de garimpos e réu por exploração ilegal do minério.

O primeiro capítulo da série sobre as ligações do garimpo com a política, que compõe o lançamento do O GLOBO Plus — um agregador de conteúdos premium numa área exclusiva para assinantes no site do jornal — mostra como o pequeno comício numa das regiões mais devastadas do Pará, acompanhado in loco pela reportagem, é um exemplo de como campanhas eleitorais e a extração ilegal de ouro se unem rotineiramente no mesmo palanque na região. O resultado dessa parceria é uma relação simbiótica, em que os dois lados ganham.

Ao mesmo tempo em que tenta eleger um aliado como prefeito, Grota responde a processos em três estados por suspeitas de praticar crimes como tráfico de drogas, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Ao longo de nove meses em 2021, ficou foragido após ser alvo de uma operação da PF. A participação do empresário na campanha em Itaituba só tem sido possível porque a Justiça anulou um pedido de prisão contra ele após indefinição sobre quem irá julgá-lo. O caso hoje está sob análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Procurada, a defesa de Grota não quis comentar. Ele não consta como doador oficial das eleições. O candidato D’Almeida também não se manifestou.

Com status de megaempresário na região do vale do Rio Tapajós, sudoeste do Pará, Grota é dono de garimpos, fazendas, haras, pistas de pouso e empresas de maquinário de extração mineral e peças de carro. Investigações citam 18 autorizações para explorar o ouro na região de Itaituba, onde as permissões, concedidas oficialmente pela Agência Nacional de Mineração (ANM), dependem de aval dos políticos locais. Por essa razão, a disputa eleitoral na região é estratégica para garimpeiros.

O mesmo cenário se repete em campanhas em outras cidades do ouro da Amazônia. Ao longo de uma semana, a reportagem do GLOBO percorreu mais de 1.600 quilômetros pelo sudoeste do Pará para ouvir moradores, empresários e políticos nos municípios campeões em alertas de garimpo do país. A situação encontrada foi de candidaturas que usam de multas ambientais à concessão de licenças para mineração como trunfo eleitoral.

Um dos casos mais notórios é o do garimpeiro Rodrigo Martins de Mello, o Rodrigo Cataratas, que tentou se eleger deputado federal em 2022 e, neste ano, se tornou o principal cabo eleitoral de Brunna Cataratas (PSD), sua irmã, candidata a vereadora de Boa Vista, capital de Roraima.

Dono de um patrimônio de R$ 33,5 milhões — declarado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) —, Rodrigo Cataratas mantinha uma frota de helicópteros e aeronaves que, segundo a PF, abastecia os garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami. Ele é réu em três processos na Justiça Federal por ligação com a exploração irregular de ouro em Roraima. Em um deles, Bruna também é ré. Procurada, a defesa de Cataratas afirma que sua “atividade garimpeira sempre foi legal, com licenças ativas e em terras permitidas”. A candidata não comentou.

Em postagens nas redes sociais, o garimpeiro afirma que, caso eleita, a irmã “dará voz aos garimpeiros” na Câmara Municipal da capital de Roraima. A maioria dos garimpos é irregular no estado, que tem 46% do seu território demarcado como áreas de preservação.

— Hoje não tem um representante da classe garimpeira. Não tem deputado federal, estadual, governador, nenhum prefeito. Precisamos urgentemente disso para desenvolver a nossa economia — afirmou Brunna em um evento de campanha ao lado do irmão, Cataratas, na semana passada.

Doações na mira da PF

A relação entre alvos de investigações e políticos da região, contudo, vai além de declarações de apoio. Segundo a PF, doações eleitorais feitas em 2020 a candidatos de Novo Progresso (PA), vizinha a Itaituba, foram usadas para lavar dinheiro da extração ilegal.

O principal alvo do inquérito em curso é Marcio Macedo Sobrinho, dono de mineradora que chegou a ficar preso por 22 dias em 2022. A PF identificou que uma empresa dele movimentou R$ 29,4 milhões em contas ligadas a Ubiraci Soares Silva (União Brasil), o Macarrão, que foi prefeito até 2020 de Novo Progresso e nas eleições atuais mira voltar ao poder municipal como candidato a vice.

Além dos repasses para o ex-prefeito, a PF aponta que Macedo Sobrinho doou R$ 67 mil nas eleições de 2020 a um candidato a prefeito e a outros seis postulantes a vereador com o suposto intuito de obter licenças ambientais para explorar ouro na região.

“Foram apontadas doações de campanha no ano de 2020 para diversos candidatos no município de Novo Progresso (PA), onde possui a grande maioria dos seus empreendimentos, gerando indícios de financiamento de campanha para posterior obtenção de benefícios ilícitos, tal como a própria aprovação das licenças requeridas”, pontua o relatório da investigação.

A defesa do dono de mineradora diz que as doações eleitorais foram feitas “dentro da lei” e que as investigações ainda não terminaram. “(A empresa de Macedo Sobrinho) nunca fez lavagem de dinheiro, sendo precipitadas as afirmações da Polícia Federal nesse sentido”, sustenta a nota. Procurado, Macarrão, que também foi alvo da PF, não se manifestou.

A ligação de Macarrão, o ex-prefeito candidato a vice de Novo Progresso (PA), com empresários do garimpo inclui outro alvo da PF. O principal doador de sua campanha em 2020 foi Dirceu Santos Frederico, dono de uma empresa de comércio de ouro e mineradora na cidade que repassou R$ 90 mil para a sua candidatura.

Frederico, que foi diretor da Associação dos Mineradores do Alto Tapajós (Amot) e secretário municipal de Meio Ambiente de Itaituba, chegou a ser preso por cinco dias em setembro de 2022 sob suspeita de comprar ouro extraído de áreas protegidas da Amazônia. Meses antes, a PF havia interceptado um carregamento avaliado em R$ 23 milhões em barras do minério que pertenciam à sua empresa. Na ocasião, Frederico afirmou que a carga tinha origem legal.

Uma ação civil pública também aponta suspeitas de utilização de garimpos fantasmas por Frederico para “esquentar” ouro retirado de reservas ambientais. Procurado, o empresário não respondeu. No processo, a defesa dele alegou que a empresa nunca teve conhecimento de que o ouro adquirido tinha envolvimento com atividades ilícitas e que todas as transações foram rigorosamente registradas na contabilidade.

‘Que vença o melhor’

O maior doador eleitoral ligado ao garimpo nos últimos anos é Valdinei Mauro de Souza, conhecido como Nei Garimpeiro, apelido que ganhou na época que retirava ouro do subsolo do Rio Tapajós com bateia e picareta. Em 2020, ele enviou R$ 200 mil para reeleger Valmir Climaco (MDB), o atual prefeito de Itaituba, onde o empresário possui uma licença para explorar ouro e autorizações para pesquisar a existência do minério.

Nei Garimpeiro também doou R$ 100 mil à reeleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2022. No caso do ex-presidente, o apoio extrapolou o financiamento de campanha e lhe rendeu uma ação na Justiça do Trabalho por assédio eleitoral a funcionários de suas empresas — uma delas chegou a ser obrigada, na ocasião, a se abster de tentar influenciar o voto dos empregados. O magistrado também estipulou uma multa de R$ 10 mil se a pressão continuasse.

A exemplo de outros empresários do garimpo que financiaram campanhas eleitorais, Nei Garimpeiro é alvo de uma investigação da PF. Ele é suspeito de ser beneficiário de um suposto esquema de contrabando de mercúrio de países como México, Bolívia e China. O produto, considerado essencial para a extração do ouro, tem a comercialização controlada no Brasil pelo seu alto grau de toxicidade.

O empresário foi alvo de mandados de busca e apreensão em dezembro de 2022, após comprar uma grande quantidade do produto trazida ao país de forma clandestina. Ele diz que não sabia das irregularidades da fornecedora e que a compra foi realizada com autorização do Ibama e da PF. O mandado foi posteriormente anulado pelo Tribunal Regional Federal.

Sob a mira da PF, Nei Garimpeiro decidiu ficar longe da política neste ano e disse que, desta vez, não se envolverá com campanhas na cidade onde possui garimpos.

— Conheço os dois candidatos (de Itaituba) e não participarei do processo eleitoral, nem com apoio, nem com doações. Torço para que vença o melhor — afirmou ele.

A ‘cidade pepita’

Chamada de “Cidade Pepita”, Itaituba é a origem de 41% do ouro ilegal do território brasileiro, segundo um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A relação entre o minério e a política pode ser observada logo na sede da prefeitura, instalada ao lado de uma cooperativa de garimpeiros, um posto de compra e venda do metal precioso e uma empresa de táxi aéreo. Os dois primeiros estabelecimentos, porém, estão atualmente fechados em razão de operações da PF por suspeita de crime ambiental.

Os dois principais monumentos da cidade são a estátua de um garimpeiro com sua bateia (utensílio usado para mineração) e de um pequeno avião usado na década de 1980 para se chegar às áreas de garimpo. As ruas levam nomes de garimpeiros históricos — como o de Wagner Domingues, o “Pai Velho” — e os açougues, padarias e farmácias homenageiam a principal fonte de renda do município: Boi de Ouro, Pão de Ouro e Ouro Farma. O plenário da Câmara Municipal exibe um grande painel com a imagem de um garimpeiro e o hino oficial canta na estrofe “os garimpos, as praias, a fonte”.

Itaituba responde, sozinha, por 30% de todas as permissões de lavra garimpeira (PLGs) do país — a autorização oficial para que um garimpeiro possa escavar o subsolo em busca do metal precioso. A proliferação dessas licenças, que alçou a cidade ao topo da exploração do ouro no país, tem sido alvo da PF e do Ministério Público Federal.

Uma das responsáveis pelas investigações, a procuradora Thais Medeiros aponta que o modelo em que cabe ao prefeito autorizar novas áreas de mineração é “frágil”, pois vinha sendo utilizado para “legalizar” o ouro extraído de reservas indígenas e unidades de conservação da Amazônia.

— O licenciamento pelas prefeituras dificulta a fiscalização de órgãos ambientais. E há uma possibilidade de isso estar sendo utilizado como mecanismo de ganho político, porque nos municípios do Pará a atividade de mineração e garimpagem é a principal fonte de renda para grupos econômicos — explica Medeiros.

A expansão de licenças de exploração de ouro em Itaituba é atribuída ao atual prefeito, o garimpeiro Valmir Climaco (MDB), que, em seu terceiro mandato à frente de Itaituba, já declarou ter liberado de 400 a 500 áreas de mineração na cidade.

Climaco já foi processado por extrair ouro de garimpo irregular na Amazônia. A Justiça Federal decidiu suspender a ação, em 2022, depois que o prefeito aceitou pagar uma multa de R$ 40 mil. Em outro caso, foi condenado a 4 anos e 9 meses de prisão em 2019 por desmatar área de preservação na mesma região. Ele nega irregularidades e afirma que, atualmente, só atua em locais legalizados.

Em busca de tentar emplacar como sucessor o seu vice, Nicodemus Aguiar (MDB), Climaco tem recorrido ao apoio de garimpeiros da região. No último dia 5 de setembro, ele participou de um evento na sede de uma das maiores cooperativas de exploradores de ouro da cidade. Ao falar com eleitores, comparou a busca por votos à de riquezas:

— Quanto mais se tem, mais se quer.

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