Foto:Divulgação/CMA

No remoto vilarejo Ouro Mil, situado na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima, uma ramificação do garimpo ilegal instalou sua base para extrair não apenas o minério mais cobiçado do mundo, mas também a cassiterita, outro mineral lucrativo, usado na indústria de tintas, plásticos e fungicidas. O apelido do local provém do mais puro ouro existente na região, ali sedimentado. Em fevereiro, os mineradores irregulares foram expulsos por um grupo de 15 homens armados com fuzis, espingardas e pistolas. Rendidos pelos criminosos, deixaram para trás maquinários e ouro.

Ali começaria o curto reinado de um líder da facção de tráfico de drogas mais temida do Brasil, que foi morto com outros três comparsas em confronto durante ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 30 de abril.

Relatório sigiloso de inteligência da Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania de Roraima, produzido em março e obtido com exclusividade pelo Valor, comprova a atuação do grupo criminoso originado em São Paulo no enclave indígena, que consiste em uma área legalmente protegida de 96,65 km2. O documento traz a magnitude do arsenal bélico que viria a ser apreendido na operação: um fuzil calibre 5,56, cinco espingardas calibre 12, uma espingarda calibre 20, duas pistolas calibre 9mm, uma pistola calibre 45, quatro carregadores de pistola, dois acessórios de arma de fogo do tipo mira holográfica, um binóculo e um colete tático. Havia mais de dez toneladas de cassiterita prontas para transporte.

Batizado de narcogarimpo, o fenômeno remonta a 2018, quando a quadrilha ingressou na atividade extrativista na TIY sob pretexto de fazer segurança de mineradores. Ao longo do tempo, passou a reivindicar territórios e atuar no garimpo, além de perpetrar homicídios, assaltos, exploração de prostituição e venda de armas, munições e entorpecentes.

O acampamento, segundo relataram agentes ao Valor, era uma espécie de fortificação, com infraestrutura de olheiros, radiotransmissores e rede de internet via satélites Starlink, do bilionário Elon Musk. Tudo para proteger o líder e sua mulher, hoje foragida da Justiça. Antes da operação que resultou na morte do criminoso, outras duas foram feitas no local. A partir daí, investigadores detectaram um forte controle logístico de produção e escoamento de ouro e cassiterita por meio do rio Uraricoera. Em uma ação que durou três meses, o tráfego de embarcações foi bloqueado, o que gerou confrontos entre garimpeiros faccionados e autoridades. Para dar vazão à carga, o grupo começou a usar helicópteros e aviões destinados a Boa Vista, capital do Estado.

Os planos dos traficantes eram expandir os negócios dentro da área yanomami, segundo um oficial que liderou as ações. A ideia seria comandar o tráfico nos garimpos ilegais, porque há consumo muito grande de drogas nessas áreas. Mas, ainda de acordo com o oficial, eles enxergaram que o negócio do ouro e da cassiterita era tão bom que resolveram operar na extração, além de cobrarem taxas de garimpeiros sem envolvimento com o crime organizado. Apesar do sucesso da operação no desmonte do acampamento, informações de inteligência dão conta de que o grupo criminoso continua na região, mas em outro local.

O caso de Ouro Mil ilustra a situação que perpassa a Bacia Amazônica: facções de tráfico de drogas egressas do Sudeste vêm expandindo sua atuação em cidades, vilas e campos dos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Pela primeira vez, o anuário da situação das drogas no mundo, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU), traz um capítulo dedicado ao tema. “O tráfico ilícito de drogas está exacerbando e ampliando uma série de outras economias criminosas, incluindo ocupação ilegal de terras, extração ilegal de madeira, mineração ilegal, tráfico de animais silvestres e outros crimes que afetam o meio ambiente. Indígenas e outras minorias são desproporcionalmente afetados pelo elo criminoso, pois sofrem deslocamento forçado, envenenamento por mercúrio e maior exposição à violência e vitimização”, relata o texto.

“A floresta dá alimentação ao povo yanomami. Nossas vidas foram afetadas diretamente porque invasores contaminaram, destruíram os rios e florestas, além das roças onde yanomamis plantavam”, diz Junior Hekurari, presidente da Urihi Associação Yanomami.

Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que o dinheiro do narcotráfico encontrou um amálgama na criminalidade local. “Pagam para usar a estrutura já existente e viram uma espécie de síndicos da Amazônia, determinando o que pode ou que não pode.” A facção paulista, indica ele, financia máquinas do garimpo. “O ouro é perfeito para lavar dinheiro do tráfico porque tem baixa regulação, é commodity usada como lastro financeiro em várias operações”, afirma, estimando que o comércio de drogas movimente ali algo em torno de R$ 25 bilhões anuais.

“Garimpo, desmatamento e tráfico de drogas viraram uma holding criminosa com tentáculos em governos estaduais”, nota Alexandre Saraiva, delegado da Polícia Federal responsável pela maior apreensão de madeira ilegal no Amazonas – e que, posteriormente, protagonizou um embate com o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. “O Brasil é o 10º produtor mundial de ouro, mas o 5º maior em reservas, o que gera descompasso e grande extração ilegal. Eles criam processos na Agência Nacional de Mineração. Em boa parte deles, não há exploração. Ocorre apenas para criar documentação falsa a fim de limpar o ouro”, diz Saraiva.

Lucas Pavarina, presidente do Instituto de Desenvolvimento Mineral do Tapajós, no Pará, concorda. “Tornou-se interessante usar ouro como moeda de lavagem do tráfico. De 2015 para cá tem sido muito evidente”, diz. Segundo ele, o mercado do ouro declarado somente naquela região gira em torno de 1,5 tonelada por mês, algo em torno de R$ 3,5 bilhões.

Deixe seu comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here