Quando chegou ao Brasil, em fevereiro de 2021, o venezuelano Ángel Sifontes León trouxe a esposa e três filhos, de 13, 11 e 5 anos, além de um alto nível de escolaridade e qualificação profissional. Os dois últimos são seus maiores trunfos para conseguir um trabalho que ofereça melhores oportunidades para a família no Brasil.
Enquanto a vaga não aparece, o técnico de 47 anos vive com a família em um abrigo de Boa Vista, capital de Roraima, e investe em capacitação.
Esse tem sido o caminho de muitos migrantes e refugiados para aumentar as chances de conseguir um emprego ou empreender no Brasil. No fim de 2021, esse contingente era de 287 mil pessoas em situação regular no país, segundo dados do governo.
Foi justamente nessa área a oportunidade de capacitação que se abriu enquanto esperava uma vaga em abrigo. Ele está na fila da chamada interiorização, parte do programa Acolhida, do governo federal, que faz a ponte com municípios, entidades da sociedade civil, empresas ou indivíduos interessados em receber venezuelanos em outros estados brasileiros.
À espera da interiorização, ele participou da primeira turma do projeto “Fronteira Digital”. Os participantes recebem formação técnica de informática, com sessões de mentoria e acompanhamento em um laboratório no próprio abrigo.
A iniciativa é liderada pela International Finance Corporation (IFC), braço do Banco Mundial, em parceria com Microsoft Brasil, Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e Associação Voluntários para o Serviço Internacional Brasil (AVSI Brasil).
— A situação na Venezuela é tão crítica que não podíamos mais ficar lá, não conseguiria oferecer educação a meus filhos — diz Sifontes, que pensa em empreender no Brasil, mas também tem procurado trabalho em empresas do ramo de petróleo, e sonha em viver na Bahia.
Escolaridade em alta
Boa escolaridade e formação não são raros entre a população refugiada. Ao contrário. Enquanto a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, indica que apenas 30% dos brasileiros têm ensino médio completo ou incompleto, por exemplo, esse índice é de 61% entre os beneficiários venezuelanos registrados no Acolhida.
Porém, muitas vezes refugiados esbarram na falta de oportunidades e conexões locais, o que reforça a importância da capacitação e de uma ponte que os conecte às empresas.
Aluna da mesma turma de capacitação de Sifontes, Maria Gabriela Real, de 35 anos, trabalhava como cozinheira e decoradora de festas em Ciudad Bolívar, na Venezuela, antes de vir para o Brasil, em agosto.
A escola em que fazia formação em gastronomia fechou por falta de matéria-prima, comida, em meio à crise venezuelana, e ela se viu sem perspectiva para si e os quatro filhos — o mais velho com 15 anos, o caçula com apenas 2 anos.
— Lá eu tinha uma formação, e aqui é como começar do zero — diz a venezuelana, que recentemente foi entrevistada para uma vaga num restaurante de Brasília, mas ainda não teve resposta.
Ponte necessária
Julia Petek de Figueiredo, que trabalha na AVSI Brasil, acompanha os treinamentos e dá início ao processo de busca de trabalho para quem completa o curso.
Assim que isso acontece, a equipe faz o currículo dos participantes e compartilha com a equipe da IFC, que atua junto ao Fórum Empresas com os Refugiados.
O grupo, em parceria com a Acnur, faz a ponte com empresas interessadas em empregar os refugiados. O passo seguinte é o agendamento de entrevistas.
A confirmação de uma vaga, aliada à possibilidade de interiorização, faz toda a diferença para famílias que vêm de tão longe.
A Acnur fez recentemente uma primeira rodada de um levantamento sobre limites e desafios à integração local de refugiados e migrantes venezuelanos interiorizados durante a pandemia.
O resultado mostra a diferença entre quem está nos abrigos de Roraima e quem consegue ser realocado em outros estados no acesso ao mercado de trabalho e maior renda.
Diversidade
A taxa de desemprego da população venezuelana abrigada em Roraima é de 31%. Esse índice cai para 18% entre os interiorizados. Ao mesmo tempo, o rendimento médio mensal da população abrigada ocupada maior de 18 anos é de R$ 594, enquanto o dos interiorizados que estão ocupados chega a R$ 1.325.
Paulo Sérgio de Almeida, oficial de Meios de Vida e Inclusão Econômica da Acnur, conta que as oportunidades têm crescido na esteira das pautas ESG (sigla em inglês para políticas ambiental, social e de governança) nas empresas. Elas reforçam políticas e agendas relacionadas à diversidade nas empresas. Mesmo assim, o caminho é longo:
— É fundamental aumentar a oferta de capacitações da população abrigada para melhorar as oportunidades de trabalho. Incluindo aulas de português. As pessoas interiorizadas dominam melhor a língua que as pessoas que permanecem abrigadas. Isso contribui para que tenham mais oportunidades. Ao mesmo tempo, ter mais oportunidades melhora o português — afirma.
Desconhecimento e preconceito afastam empresas
Do lado das empresas, ainda existe muito desconhecimento sobre o processo de contratação de refugiados, o que muitas vezes ultrapassa a percepção das vantagens de incluí-los no quadro de funcionários.
Idioma estrangeiro, formação acima da média, facilidade de adaptação a novas rotinas e necessidades, engajamento em desafios e capacidade de inovação são apenas algumas das características que esses trabalhadores podem ter, em favor da produtividade das empresas. É o que diz Leandro Fernandes, líder de Pessoas e Cultura na consultoria de recrutamento e seleção ManpowerGroup:
— As empresas não sabem disso. Precisam conhecer essas pessoas para terem interesse em contratá-las.
O panorama poderia ser muito melhor se não fosse a desconfiança em relação ao motivo que levou essas pessoas a deixarem seus países. A burocracia envolvida no processo também é um entrave.
— São pessoas com formação em áreas de grande demanda, mas que, por conta da burocracia de validação de diplomas e da morosidade de processos de alguns órgãos oficiais, têm dificuldade de inserção no mercado de trabalho — diz Leandro. — Essa população pode ajudar a reduzir o gargalo de contratação de mão de obra qualificada. As empresas precisam investir na capacidade de aprendizagem e adaptação das pessoas.
Pesquisa recente feita pelo ManpowerGroup mostrou que 74% das empresas apontam escassez de talentos.