A expectativa de fisgar um pirarucu, maior peixe amazônico que chega a pesar 200 quilos, tem levado centenas de turistas e pescadores esportivos à região de Cardoso, no norte do Estado de São Paulo, na divisa com Minas. Desde que o gigante dos rios começou a ser fisgado com maior frequência, a ocupação das pousadas na margem paulista do Rio Grande, que separa os dois Estados, aumentou 50%, diz a prefeitura de Cardoso. Por ser uma espécie invasora, a pesca é liberada para pescadores amadores e profissionais devidamente registrados, segundo a Polícia Ambiental.

Especialistas advertem que o pirarucu pode se tornar uma ameaça para os peixes nativos dos rios paulistas, por ser voraz e capaz de desestabilizar as cadeias alimentares. Ele está ocorrendo em um trecho represado do rio pela Hidrelétrica de Água Vermelha, onde já proliferam outras espécies não nativas, como o tucunaré. O peixão atingiu vários afluentes do Grande e pode se espalhar por outros cursos d’água do interior. Conforme o Centro de Pesquisa e Conservação de Peixes Continentais (Cepta), a proliferação de espécies exóticas já coloca em risco de extinção peixes nativos de grande relevância nos rios paulistas, como o curimbatá e a piracanjuba.

Fisgar o gigante dos rios está virando rotina para o pescador Roberto do Carmo Jesus, morador de Cardoso. Desde o final de 2019, ele pescou cinco grandes exemplares, o menor deles com 73 quilos, no Rio Marinheiro, afluente do Grande. O maior pesou 110 quilos e mediu 2,15 m. “Quando conto que peguei no anzol, com vara de pesca, ninguém acredita”, disse. O pescador conseguiu uma boa renda com a venda da carne excedente a R$ 25 o quilo – uma parte ficou para o consumo da família. Sua mulher, Maria Lúcia, usa as escamas como lixa de unha.

Jesus fisgou o peixe maior em um braço do rio com águas rasas e calmas, mas lutou quase uma hora para colocar o espécime no barco, com a ajuda de um amigo. “Em certo momento, ele investiu contra o barco, acho que tentando derrubar a gente na água. Foi um susto grande, mas acabou dominado”, relatou o pescador.

Em outubro do ano passado, o pescador Gonçalo da Silva, de Mira Estrela, conseguiu um pirarucu de dois metros nas águas do Grande. “Fisguei o grandão em um bico do rio, foi 40 minutos de briga com o molinete. Pesou 78 quilos”, contou. Antes, ele já havia capturado um espécime menor, no trecho do rio que corta Mira Estrela.

A façanha maior ainda é do comerciante Thiago Aparecido dos Santos, de 18 anos. Com a ajuda de dois amigos, ele fisgou e arrastou para o barco um pirarucu de 117 quilos, em janeiro deste ano, no Rio Turvo, afluente do Grande. Depois desse, o pescador ainda pegou outros exemplares menores. “Tem muito pirarucu, ele se reproduz muito rápido e consome outros peixes. Se a gente não continuar pescando, logo ele vai fazer muito estrago”, disse. O Turvo, onde o pirarucu já chegou, tem vários afluentes, inclusive o Rio Preto, que está mais próximo da bacia do Rio Tietê.

Origem dos invasores

Oficialmente ainda não se sabe como o peixe amazônico chegou ao norte paulista. Segundo os relatos, um criador instalou um viveiro com filhotes de pirarucus em Paulo de Faria, em 2010. A ideia dele era produzir o peixe em cativeiro e vender a carne, mas o açude se rompeu durante o período chuvoso e os peixes foram parar no Rio Grande. Como as águas são represadas, a espécie encontrou condições ideais para se reproduzir. Os pirarucus estão em um trecho com cerca de 100 quilômetros do rio, entre a barragem da Hidrelétrica de Marimbondo e a de Água Vermelha. Ainda não houve registro do peixe à montante de Marimbondo.

Com a rápida proliferação da espécie, a prefeitura de Cardoso já estuda uma forma de promover o turismo usando o pirarucu. “O município vem estudando alternativas para evitar que o peixe se torne um problema e uma delas é promover a pesca esportiva”, disse o assessor de comunicação e eventos, Eduardo Andrade.

Segundo ele, o peixão passou a atrair um fluxo mais intenso de turistas à cidade. “Estamos com inscrições para um campeonato de pesca do tucunaré, que acontece no próximo dia 10, mas muitos pescadores estão vindo por conta do pirarucu”, disse.

Conforme a Secretaria de Turismo, os ranchos de veraneio da região estão lotados. “Na prainha (de Cardoso) temos 20 quiosques grandes, dez quiosques pequenos e cinco chalés. Estão todos ocupados e ainda devemos receber mais turistas. Nossa expectativa é de que, durante o campeonato de pesca, sejam mobilizados 100 barcos com ao menos dois pescadores em cada um”, informou Andrade.

O Grande deságua no Rio Paraná, que banha toda a costa oeste do Estado de São Paulo. Em Presidente Epitácio, à beira do ‘Paranazão’, os pescadores estão na expectativa da chegada do pirarucu, mas ainda não houve registro de captura ou avistamento. “É questão de tempo para eles migrarem rio abaixo, pode acontecer já na temporada das chuvas”, disse o guia pesqueiro Francisco Garcia.

Nesta época do ano, começa a temporada de pesca do tucunaré, que vai até outubro. “É o peixe preferido dos turistas, pois luta bastante no anzol. Também se pesca muito o pacu e a corvina”, conta a atendente Shirley Ribeiro, da Pousada Tucuna. Segundo ela, alguns hóspedes chegam perguntando sobre o pirarucu. A atendente se preocupa com o possível impacto ambiental. “Depois que aumentaram os tucunarés, os dourados desapareceram. Os últimos cardumes estiveram por aqui há cinco anos”, afirmou.

Sem predadores

O peixão amazônico chegou a outros afluentes como o Ribeirão Marinheiro, onde também já foi pescado, segundo o presidente da Associação Projeto Ambiental Piracanjuba, André Dorta Souza. “O pirarucu não tem predadores e a população não tem o costume de consumir esse peixe. É uma espécie voraz, que devora tudo o que encontra, por isso as espécies nativas estão sumindo”, disse.

Alguns pescadores, segundo ele, estão se especializando em pescar o invasor, mas falta mercado para o consumo do peixe. “Se incentivarmos a culinária com a carne do pirarucu, a pesca aumenta e haverá controle da população. Essa talvez seja a única saída, pois a quantidade está aumentando.”

Os rios da região também estão sendo povoados pelo bagre africano que, segundo Souza, não tem valor comercial. “O consumo desse peixe enfrenta mais resistência, por isso não atrai pescadores. E é também uma espécie voraz. Juntos, pirarucu e bagre são um sério problema ambiental”, avaliou.

A chegada do peixão aos rios paulistas surpreendeu o veterano pescador Lauro Luís da Silva, de 83 anos, morador de Barra Bonita. Ele lembra que, na década de 1970, precisou viajar para a Amazônia para fisgar um desses gigantes dos rios. “Foi em 1974, no Rio Tocantins, em Marabá (sudoeste do Pará). Pesava mais de 100 quilos. Maior que ele, pesquei uma piraíba de 140 quilos anos depois, no Rio do Peixe, no Tocantins que, na época, ainda fazia parte de Goiás. Será que ainda vou ver um pirarucu no meu Tietê?”, questiona.

O velho pescador lamenta que os peixes que povoavam o Rio Tietê décadas atrás praticamente desapareceram. “O dourado, a tabarana, o piau, até o lambari já não se vê mais. Ainda tem corvina e tilápia, que não são peixes daqui, mas em pouca quantidade. Pior do que os invasores é a poluição que vem acabando com os peixes. Ficam só espécies mais resistentes a ela, como a piranha. Essa, ainda tem muito”.

Risco à biodiversidade

Conforme a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), as espécies exóticas são a segunda maior causa de perda da biodiversidade, atrás apenas da ação do homem. Os invasores são aquelas que se encontram fora de seu ambiente de distribuição natural e ameaçam as espécies nativas ou seus ecossistemas, causando impactos ambientais e econômicos.

Os mais comuns nos rios paulistas são as espécies de tilápias, peixe de escamas, altamente tolerante às variações das condições ambientais. Entre os mais impactantes está o bagre africano, predador voraz de peixes menores e capaz de sobreviver a condições ambientais extremas. A espécie sobrevive no lodo de rios secos e até migrar de um lago para outro por terra. Depois que se instala, sua eliminação é muito difícil.

A presença do bagre africano ao Brasil está relacionada à criação de peixes para “pesque-pague”, tendo ocorrido escapes que permitiram a fixação da espécie em águas interiores. O peixe é dotado de pseudo-pulmões, que permitem respirar fora d’água. “O bagre africano come de tudo, desde alevinos e peixes pequenos, até animais em decomposição. É um urubu do rio”, disse o experiente Silva.

A legislação federal define como obrigação do Estado “impedir que se introduzam, controlar ou erradicar espécies exóticas que ameacem os ecossistemas, habitats ou espécies”, e ainda “promover a prevenção, erradicação e o controle de espécies exóticas invasoras que possam afetar a biodiversidade”.

Os levantamentos indicam que o número de espécies exóticas vêm aumentando em nossas bacias. Conforme estudo do Instituto Ambiental do Paraná, a região do Alto Paraná, que inclui o Rio Grande, possui entre 200 e 300 espécies nativas, a maioria (76%) autóctones, ou seja, originária dessa região. Em 2007, havia apenas sete espécies exóticas, entre elas o bagre africano. Em 2015, já eram 46 espécies invasoras.

Conforme a pesquisadora Luciana Carvalho Crema, coordenadora do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (Cepta/ICMBio), das espécies ameaçadas de extinção que têm registros de ocorrência no estado de São Paulo, duas, o curimbatá e a piracanjuba, são ameaçadas por espécies exóticas, segundo portarias editadas este ano. Outras duas, o surubim ou pintado e o pacu comum, estão sob ameaça devido à hibridização com congêneres ou por híbridos produzidos em piscicultura. No caso do pacu, a espécie foi classificada como “quase ameaçada”.

Ela explica que as espécies invasoras colocadas em nossos sistemas naturais podem vir de outros países, caso da tilápia, ou de outras regiões do Brasil, como o pirarucu. “O maior problema é elas ocuparem nichos ecológicos das nativas. Muitas são predadoras e desestabilizam as cadeias alimentares. Quando são espécies criadas em cativeiro, a variedade genética delas é muito baixa e podem levar doenças para os outros peixes. Podem ainda interferir na genética das espécies nativas, com o agravante dos híbridos, que são manipuladas geneticamente e na natureza podem produzir mais híbridos”, explicou.

A especialista citou o caso do pintado, que tem o híbrido na cachara e, quando esta se reproduz com outros pintados, gera mais híbridos. Algumas espécies são introduzidas em habitat diferente por interesse econômico ou turístico. “O tucunaré, por exemplo, é nativo da região amazônica, mas é de grande interesse para a pesca esportiva. É uma espécie de água corrente e quando você solta em uma represa, ela pode dizimar populações de outras espécies. Hoje, a soltura de espécies exóticas é proibida em qualquer ambiente natural do Brasil, mas a gente sabe que tem iniciativas de vários governos de nativizar o tucunaré pela importância que ele tem para a pesca esportiva.”

No caso do pirarucu, ela vê como uma das saídas estimular a pesca artesanal, já que o peixe atrai pelo porte e qualidade da carne. Luciana considera possível o cultivo de espécies exóticas em cativeiro, mas com os cuidados para que fiquem contidas nesses ambientes.

“É importante fazer campanhas para explicar o que pode ser feito e fiscalizar os criadouros. Dois planos de ações nacionais recentes do Cepta/ICMBio contemplam uma comunicação mais aproximada com os criadores e secretarias de pesca para conscientizar quem tem tanques-redes e tanques-cavados próximos a ecossistemas naturais para que não facilitem a ida dessas espécies para os sistemas naturais”, disse.

A Polícia Militar Ambiental de São Paulo informou, em nota, que está ciente da existência do pirarucu no Rio Grande e afluentes e do impacto ambiental que isso representa, “pois é uma espécie predadora e, devido ao seu tamanho, não tem predadores para seu controle”. Segundo a corporação, levando esses fatores em conta, a pesca do pirarucu é até benéfica para fauna nativa da região.

“Sendo uma espécie exótica, não existem restrições sobre sua pesca, sendo que o pescador profissional pode capturá-lo livremente, pois não há limite de captura”, diz o órgão. Já o pescador amador, conforme prevê regra do Ibama, poderá pescar, em águas continentais, o limite, fora de piracema, de um pirarucu.

Ainda conforme a Ambiental, o pescador que fisga e retira da água um pirarucu de 100 quilos ou mais só será multado se cometer outras infrações, como exceder o limite de peso, pescando, por exemplo, um segundo pirarucu com mais de 10 quilos, ou ainda por pesca em local proibido e pesca com petrechos proibidos, além de outros motivos.

A Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente informou que o pirarucu não integra a lista de espécies reconhecidas com potencial de bioinvasão no Estado. “Apenas o peixe tucunaré (Chichala kelber e Chichala piquiti) é reconhecido na lista como uma espécie potencialmente bioinvasora no Estado”, disse, em nota.

A pasta disse ainda orientar, no âmbito das autorizações emitidas, que os manejos de fauna silvestre em vida livre, no caso de peixes exóticos capturados, que não sejam novamente soltos. “Essas espécies devem ser destinadas a empreendimentos de cativeiro, previstos nas autorizações, ou para instituições de pesquisas. Nas autorizações para repovoamento não permitimos a utilização de peixes que não sejam de distribuição natural da bacia hidrográfica onde está sendo realizado o manejo.”

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