A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) reforça que não cabe ao Estado brasileiro o papel de definir quem é indígena ou não. A exigência do reconhecimento estatal como requisito para o acesso a direitos configura-se como uma barreira institucional para o exercício da cidadania e confunde-se com a antiga política tutelar não recepcionada pela Constituição Federal de 1988. O texto constitucional trouxe um novo entendimento sobre os processos individuais e sociais a respeito da construção e formação de identidades étnicas ou de pertencimento de povos, reforçando a autonomia das comunidades indígenas.
Portanto, não é atribuição da Funai ou de qualquer outro órgão estatal emitir documentos, tais como atestados, declarações e afins com o objetivo de confirmação de pertencimento étnico. Isso significa que é a própria comunidade indígena a qual o indivíduo pertence quem pode validar a autodeclaração da pessoa enquanto indígena. Esse processo deve ser baseado nos usos, costumes e tradições internas definidas por cada povo.
O entendimento da autarquia indigenista tem como base, além da Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. A norma reconhece o desejo dos povos indígenas de manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões e de assumir o controle de suas próprias instituições, formas de vida e desenvolvimento econômico. “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”, estabelece o Artigo 1º, reforçando a autonomia dos povos indígenas.
Autonomia
Essa independência e autonomia são conquistas históricas dos povos indígenas, que, durante séculos, viveram sob tutela do Estado brasileiro. A Funai foi instituída em 1967 com o objetivo de assumir esse regime tutelar e promover a inserção dos indígenas na sociedade. Tal regime tinha como base a ideia de que os povos indígenas eram incapazes e improdutivos, que suas culturas e tradições eram inadequadas e, portanto, precisavam ser inseridos na sociedade não indígena. Essa tentativa de inserção era promovida por meio do controle do Estado sobre os povos.
A Constituição Federal corrigiu essa visão equivocada, até então predominante, encerrou a tutela estatal e reconheceu a organização social, os costumes, as línguas, as crenças, as tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, a autonomia e a autodeterminação dos povos indígenas.
Com isso, a Funai passou a ser a orientadora e principal executora da política indigenista no Brasil, com a missão de promover e proteger os direitos dos povos indígenas. Nessa atribuição, está incluída a tarefa de enfatizar que a política indigenista é um dever de todos os órgãos e entidades dos governos Federal, estaduais, distrital e municipais e que o acesso das comunidades indígenas a seus direitos não pode ser limitado por exigências sem amparo legal, como é o caso da emissão de declaração de reconhecimento étnico pelo Estado.
Isso porque tal exigência representa uma barreira que fere a isonomia e prejudica os povos indígenas. Um exemplo disso é a forma de acesso às escolas e universidades. Em muitos casos, são exigidos dos indígenas documentos, entre eles o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), indevidamente, como meio de reconhecimento do Estado sobre o pertencimento étnico do indivíduo para a efetivação da matrícula. Essa exigência, contudo, não se aplica a pessoas não indígenas. Ou seja, cidadãos brancos, por exemplo, não precisam comprovar que são brancos. Tal medida, que dificulta o acesso a um direito fundamental, pode ser sanada com a validação da autodeclaração pela própria comunidade.
Ações
A Funai atua em articulação com outros órgãos para assegurar e fortalecer a autonomia dos povos indígenas. O objetivo é garantir o acesso a direitos com maior eficiência eliminando a burocracia e combatendo a discriminação racial. Para isso, a autarquia indigenista tem promovido palestras para orientar os servidores que atuam nas unidades locais a conscientizarem as instituições que atendem aos povos indígenas sobre o tema.
Esse trabalho é realizado em âmbito regional — como àqueles feitos em mutirões de acesso à documentação civil, por exemplo — e nacional, como no caso da Resolução Conjunta 12/2024, articulada junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Entre outros dispositivos, esta Resolução assegura o direito ao nome indígena e traz o fim da exigência do RANI e da presença da Funai como forma de comprovar informações apresentadas por indígenas.
Outro exemplo da atuação da Funai no processo de conscientização sobre a norma ocorreu no concurso público para provimento de vagas nos cargos de Auditor Fiscal da Secretaria de Estado de Fazenda do Rio de Janeiro (SEFAZ/RJ). O Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe), banca organizadora, solicitava o RANI como forma de declaração de pertencimento étnico para candidatos indígenas.
Ao tomar conhecimento, a presidência da Funai enviou um ofício à instituição esclarecendo que não cabe mais ao Estado o reconhecimento formal de quem é ou não indígena. A banca, então, retificou o edital, publicado em janeiro de 2025, retirou a exigência e “reiterou o compromisso de assegurar a realização dos concursos públicos sob sua responsabilidade dentro da mais estrita legalidade”.
Modelo de declaração comunitária
A Funai também elaborou modelos de autodeclaração e de declaração comunitária de pertencimento étnico, que podem ser acessados nos links abaixo. Os indígenas que precisarem declarar o pertencimento étnico devem preencher os dois documentos e apresentar ao órgão prestador do serviço ao qual buscam acesso. A autodeclaração deve ser preenchida pelo próprio indígena, enquanto o preenchimento da declaração comunitária cabe às lideranças da comunidade a qual pertence.
Em caso de negativa por parte da instituição, o indígena deve registrar uma reclamação no Fala.Br. O registro é importante para que a Funai possa identificar o descumprimento da norma e tomar providências.