
A bancada de Roraima no Congresso destinou ao menos R$ 52,4 milhões em emendas parlamentares para uma ONG de Boa Vista que é acusada pela Controladoria-Geral da União (CGU) de desviar verbas em um convênio com o Ministério das Mulheres. Sem funcionários fixos ou estatuto, o Instituto Brasileiro de Cidadania e Ação Social (Ibras) é tocado por pessoas envolvidas com a política de Roraima. Um ex-tesoureiro da entidade é casado com a assessora de um deputado federal, que destinou R$ 25 milhões para a entidade. A reportagem é de O Estadão.
O coordenador da bancada de Roraima, o senador Dr. Hiran (Progressistas), disse que as emendas são “fundamentais para o desenvolvimento do país”, e que as indicações para o Ibras foram feitas em conjunto pela bancada. Já o Ibras disse que as apurações da CGU fazem parte do “processo natural de monitoramento, avaliação e aperfeiçoamento da gestão dos recursos públicos”.
Além da CGU, a ONG já esteve sob investigação do Tribunal de Contas do Estado de Roraima (TCE-RR), que determinou o bloqueio dos bens do instituto e da presidente da associação por suspeitas de superfaturamento num evento do governo estadual. A medida foi depois revertida pelo plenário do TCE-RR.
A reportagem esteve na sede do Ibras no fim de maio. No endereço, no Bairro dos Estados, em Boa Vista, funcionam também uma academia de treinamento funcional; um estúdio de pilates e a Associação Victor Alecrim de Judô, a Avaju. Este era o nome do Ibras até 2021, segundo os registros disponíveis no cartório da capital roraimense.
Segundo a própria ONG, ao virar Ibras, a Avaju “ampliou suas finalidades”, “tratando prioritariamente não apenas o esporte e lazer, mas a formação do cidadão brasileiro”.
Segundo relatório da CGU publicado em maio deste ano, o Ibras informou não ter regimento interno ou outro documento similar que defina sua “estrutura decisória, competências, responsabilidades (ou) critérios de transparência”. Também não tem funcionários fixos, “realizando suas atividades por meio da Diretoria Executiva, de colaboradores voluntários e de colaboradores contratados”.
Nos registros do cartório de Boa Vista, figuram como responsáveis seis pessoas: a presidente, Bruna Antony de Oliveira; um secretário-geral; um tesoureiro; e três integrantes do Conselho Fiscal.
Desses, três receberam auxílio emergencial durante a pandemia de Covid-19: os conselheiros Rubens Maxwell Bezerra Lô e Andreza de Melo Lima, e o tesoureiro Cayo Cesar Cavalcante Garcês. Segundo o Portal da Transparência, Garcês recebeu o auxílio por estar inscrito no Cadastro Único do governo federal, composto por pessoas pobres, elegíveis para programas sociais.
A reportagem perguntou ao Ibras se esses dirigentes gostariam de se manifestar, mas eles decidiram não comentar individualmente. Por nota, a ONG esclareceu que seus dirigentes não são remunerados para exercer suas funções, e nem têm cargos permanentes – os dirigentes são eleitos para mandatos fixos. Por isso, “não há qualquer relação entre a situação socioeconômica de um associado do Ibras (…) e o volume de recursos movimentados pela instituição”, disse a ONG, em nota.
Como sugere o nome original da Associação Victor Alecrim de Judô, a entidade era tocada até recentemente pela família Alecrim. Vários membros da família comandaram a ONG. Um deles é José Victor da Costa Alecrim Bisneto, de 38 anos. O nome dele aparece pela primeira vez nos registros da associação em 2009, como tesoureiro. Só em 2019 ele deixa de constar nos registros – foi substituído na função de tesoureiro por outro familiar, João Victor da Costa Alecrim.
José Victor é casado com Paula Barbosa Heringer, que é assessora do deputado federal Pastor Diniz (União-RR) desde junho passado. No Orçamento de 2024, Pastor Diniz “apadrinhou” uma emenda de R$ 25,8 milhões da bancada de Roraima para “ações de qualificação profissional” no Estado, “de forma presencial e à distância”.
Embora se trate de uma emenda da bancada, o espelho da emenda deixa claro de quem é a autoria. “A presente emenda é composta do seguinte valor: Dep. Pastor Diniz, indicação de R$ 25.862.094,00″, diz o documento.
A emenda de bancada de Pastor Diniz deu origem a três convênios, assinados pelo Ministério do Trabalho com o Ibras. Somados, os três perfazem o mesmo valor da emenda, de R$ 25,8 milhões. O maior deles, de R$ 12,6 milhões, tem por objeto o “desenvolvimento de ações de qualificação social e profissional para jovens e trabalhadores” nos municípios de Alto Alegre, Mucajaí, Cantá e Bonfim, além da capital, Boa Vista. Os outros dois contratos, de R$ 5,5 milhões e R$ 7,6 milhões, visam outros municípios do Estado.
Procurado, o deputado Pastor Diniz disse, por meio da assessoria, que só poderia comentar o assunto pessoalmente. Já Bisneto disse que não pode responder em nome do Ibras, e que se desligou da entidade há mais de 10 anos. “Minha participação nos quadros de dirigente foi encerrada de maneira formal com minha renúncia voluntária em 2011”, disse ele. Sobre Paula Heringer, Bisneto frisou que ela “exerce uma função de natureza estritamente administrativa, no cargo comissionado de secretária parlamentar, com remuneração de R$ 1.628,86”.
“Sugerir que sua atuação profissional, no menor nível hierárquico da estrutura, poderia influenciar decisões orçamentárias de alta complexidade e natureza política, como a destinação de emendas parlamentares, é muito injusto, precipitado e surreal”, disse o deputado.

Bisneto não é o único integrante do Ibras ligado à política roraimense. A presidente da entidade, Bruna Antony, já ocupou cargos comissionados na Assembleia Legislativa do Estado. Outro Alecrim que já ocupou o posto de tesoureiro da ONG, João Victor da Costa Alecrim, foi servidor do gabinete de um deputado estadual do União Brasil. Um ex-deputado Estadual, Damosiel Lacerda de Alencar, o Sargento Damosiel (PDT), já integrou o Conselho Fiscal da ONG.
Contratos investigados
Além dos convênios com o Ministério do Trabalho, o Ibras também tem quatro parcerias ativas com o Ministério do Esporte, somando R$ 23,5 milhões; um com o Ministério da Pesca, de R$ 3 milhões; e outro com o Ministério das Mulheres, no valor de R$ 2,99 milhões. Quase todos são custeados por emendas da bancada de Roraima. As exceções são um dos contratos com o Ministério dos Esportes, bancado por emenda individual do deputado Albuquerque (Republicanos-RR); e o do Ministério das Mulheres, pago com emenda da bancada de Tocantins.
O convênio com o Ministério das Mulheres foi assinado em 2023. Mesmo sediado em Boa Vista, o Ibras tocou um projeto de capacitação profissional para mulheres vítimas de violência em Palmas (TO), localizada a cerca de 2 mil km de distância. O projeto recebeu o nome de “Mulheres que Transformam”. O Ibras também optou por contratar empresas de Boa Vista como fornecedoras para o projeto.
Ao analisar a execução do convênio, a CGU destacou o gasto elevado com lanches para as participantes do evento – foram R$ 542 mil para a compra de lanches, prevendo 40 refeições para cada uma das 700 mulheres atendidas, totalizando 28 mil lanches.
À CGU, o Ibras alegou que 740 pessoas participaram dos encontros, e que o valor pago pelos lanches acabou sendo de R$ 514,1 mil. Mesmo assim, segundo a CGU, a diferença entre os kits previstos e os efetivamente utilizados resulta num “superfaturamento por quantidade” de pelo menos R$ 171.384,00.
Apesar de se tratar de uma emenda de bancada, a indicação foi do deputado Eli Borges (PL-TO). Ao Estadão, Borges disse que chegou a pedir o bloqueio das verbas em junho passado, depois de ficar sabendo das investigações sobre o Ibras – o projeto só foi executado porque as verbas já tinham sido pagas ao Instituto.
“Quando eu comuniquei ao Ministério (das Mulheres), a partir dali o ministério tem toda a responsabilidade quando não bloqueia, quando permite a sequência do convênio, quando acatou o projeto e mandou seguir. O deputado bota a emenda, mas quem de fato executa, acompanha, fiscaliza, libera o dinheiro, bloqueia o dinheiro, é competência do Ministério”, disse Borges. Segundo o deputado, quando ele procurou o Ministério das Mulheres para pedir o bloqueio, o pagamento não tinha sido feito ainda.
Procurado, o Ministério das Mulheres disse que está acompanhando “com atenção” as apurações sobre o convênio. Segundo a pasta, o prazo do Ibras para prestar contas sobre o convênio terminou em 1º de abril deste ano. No momento, “os dados e os relatórios apresentados encontram-se em processo de sistematização e análise por parte da equipe técnica deste Ministério”, em conjunto com a CGU.