O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, na noite da última quinta-feira (18/12), o julgamento da Lei do Genocídio Indígena (Lei 14.701/2023), reafirmando a inconstitucionalidade do marco temporal. Pela segunda vez, a Corte rejeitou a tese de que os povos indígenas só teriam direito às terras ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. No entanto, a decisão manteve diversos dispositivos da lei que, na avaliação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), representam graves retrocessos para a proteção dos territórios originários.
A organização indígena defendeu a derrubada integral da norma, classificando-a como um “ataque direto aos direitos originários” e afirmando que a vigência da lei paralisou demarcações e intensificou a violência contra as comunidades.
Durante o julgamento, a APIB também criticou a condução do processo, protocolando manifestações para que a votação fosse exclusivamente presencial. Para a Articulação, a realização do julgamento em ambiente virtual — onde os ministros apenas depositam seus votos sem debate público — prejudicou o direito de acesso à justiça dos povos indígenas.
Ricardo Terena, coordenador jurídico da APIB, comenta o resultado do julgamento: “O ponto positivo foi a reafirmação dos direitos territoriais dos povos indígenas enquanto cláusulas pétreas, reafirmando a impossibilidade de alteração do art. 231 por meio de emenda constitucional, bem como o reconhecimento da omissão constitucional do Estado para concluir a demarcação das Terras Indígenas no prazo previsto no art. 67 da ADCT”.
Sobre os próximos passos, o advogado indígena conta que o texto aprovado pelo STF será enviado para o Congresso Nacional, que irá discutir as normas. “Trata-se de um procedimento novo e que nunca foi feito pelo STF”, diz ele.
Alertas
Embora o STF tenha reconhecido, pela primeira vez, a omissão do Estado brasileiro ao não concluir as demarcações no prazo constitucional de cinco anos, a decisão final estabeleceu regras que geram preocupação. Entre os pontos criticados pela APIB estão:
1. Possibilidade de oferta de terras alternativas às tradicionalmente ocupadas:
Estabelece que, em casos em que seja “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”, o que remonta às remoções forçadas de indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e é rechaçado pela Constituição Federal de 1988. Não são objeto de definição objetiva, por fim, o que caracterizaria a impossibilidade de demarcação.
2. Substituição da demarcação de terras indígenas por desapropriação de interesse social:
A partir de um ano após o trânsito em julgado do processo, novos pedidos de demarcação serão considerados apenas para áreas onde houver comprovação da presença de povos indígenas isolados. O voto estabelece que a Funai deverá publicar, em uma “lista pública”, no prazo de até 60 dias após a entrada em vigor da lei, os pedidos de demarcação apresentados pelos indígenas, devendo essa lista ser atualizada mensalmente em caso de novas solicitações. Contudo, o texto prevê que as reivindicações feitas após um ano do trânsito em julgado do processo serão processadas exclusivamente por meio de desapropriação por interesse social, exceto nos casos em que houver identificação posterior de indígenas isolados, situação em que se aplicará o procedimento regular de demarcação;
3. Criminalização das retomadas:
Proíbe retomadas antes da desocupação voluntária por não-indígenas ou da conclusão da demarcação, o que pode levar à criminalização de comunidades indígenas e justificar ações policiais estaduais contra elas. Além disso, coloca o procedimento demarcatório no “final da fila” da ordem de terras a serem demarcadas pela Funai nos próximos 10 anos, de maneira a manter a violação ao ao direito originário e ao usufruto exclusivo. O voto do Ministro Gilmar Mendes prevê que, para retomadas anteriores ao início do julgamento a Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Militar deverão empreender protocolos de negociação para a desocupação em 30 dias. Já para retomadas indígenas posteriores a esta data, será determinada a remoção imediata, sem possibilidade de mediação pelas Comissões de Soluções Fundiárias, criadas pela Resolução CNJ no 510/2023, por determinação do STF na ADPF no 828. Vale lembrar que, no Caso Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu a legitimidade das retomadas indígenas diante da inércia do Estado, que deveria ter concluído a demarcação desses territórios em cinco anos após a promulgação da Constituição.
Confira os 10 alertas no voto do ministro Gilmar Mendes, relator do julgamento, feito pelo departamento jurídico da APIB: https://apiboficial.org/2025/12/16/10-alertas-no-voto-do-ministro-gilmar-mendes-no-julgamento-da-inconstitucionalidade-da-lei-no-14-70123/
STF X Congresso Nacional
A vitória parcial no STF ocorre em um contexto de disputa com o Poder Legislativo. No dia 9 de dezembro, o Senado aprovou a PEC 48/2023, nomeada pelo movimento indígena como PEC da Morte, que tenta inserir o marco temporal diretamente no texto da Constituição. A APIB afirma que, caso a proposta avance na Câmara dos Deputados e seja promulgada, irá judicializar a questão no Supremo.
Para a APIB, o que está em jogo vai além da posse da terra; trata-se da “defesa da vida, da memória, da cultura e do futuro do clima”, visto que os territórios indígenas são as áreas mais preservadas do país.
Para saber mais sobre a luta dos povos indígenas contra o marco temporal, acesse o site: https://apiboficial.org/marcotemporal/
Sobre a APIB
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é uma instância de referência nacional do movimento indígena, criada de baixo para cima. Ela reúne sete organizações regionais indígenas (Apoinme, ArpinSudeste, ArpinSul, Aty Guasu, Conselho Terena, Coiab e Comissão Guarani Yvyrupa) e foi criada para fortalecer a união dos povos indígenas, a articulação entre as diferentes regiões e organizações, além de mobilizar contra ameaças e agressões aos direitos indígenas.








