Decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva regulamenta o poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) nas terras indígenas e nas áreas que são objeto de portaria de restrição de uso para a proteção dos direitos desses povos. O documento foi publicado, nesta segunda-feira, 3, no Diário Oficial da União (DOU), e atende à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), que acatou uma ação movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Previsto no inciso VII, da alínea ‘d’ do Artigo 1º da Lei 5.371/1967, que instituiu a Funai, esse poder de polícia nunca havia sido regulamentado. O Decreto Nº 12.373, assinado por Lula, também toma como base dispositivos do “Estatuto do Índio” (Lei 6.001/1973) e da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023).
A partir de agora, os agentes da Funai poderão, entre outras atribuições, apreender bens ou lacrar instalações de particulares, empregadas na prática de infração, além de realizar, excepcionalmente, a destruição, a inutilização ou a destinação de bens utilizados na prática de infração.
O documento também define as finalidades do poder de polícia a ser executado pelos agentes da Funai, como a prevenção e a dissuasão da violação ou da ameaça de violação a direitos dos povos indígenas; a prevenção e a dissuasão da ocupação ilegal de terceiros em terras indígenas; e a execução do consentimento de polícia, nos casos previstos em lei.
Em seu Art. 3º, o decreto estabelece quais são as infrações aos direitos dos povos originários, que vão do ingresso de não indígenas em terras indígenas à dilapidação dos bens ou a descaracterização dos limites das terras indígenas, e os danos às placas e aos marcos delimitadores de terras indígenas ou a sua remoção.
O decreto estabelece, ainda, que a Funai “poderá solicitar aos órgãos de segurança pública, especialmente à Polícia Federal, às Forças Armadas e às forças auxiliares, a cooperação necessária à proteção das comunidades indígenas, da sua integridade física e moral e do seu patrimônio, quando as atividades necessárias a essa proteção forem próprias da competência dos órgãos de segurança pública”.
“No curso do processo administrativo de apuração de ilícitos contra os direitos indígenas, a Funai deverá promover vistorias, elaborar relatórios circunstanciados e encaminhá-los, quando cabível, aos órgãos ou às entidades públicas competentes, inclusive quando for necessário para a propositura de ações judiciais”, determina o documento.
Assinado no prazo final dado pelo STF, dia 31 de janeiro de 2025, o decreto entra em vigor a partir da data de publicação. A CENARIUM solicitou informações à Funai sobre como se dará essa atuação nas terras indígenas e aguarda uma resposta.
Supremo obriga União a regulamentar
Em julho de 2020, a Apib ingressou no STF com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 apontando ações e omissões do poder público relativas à proteção dos direitos dos povos indígenas, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022).
Em novembro de 2023, o relator da ação, ministro Luiz Roberto Barroso, determinou que a União apresentasse, em 60 dias, novo plano de desintrusão de sete Terras Indígenas (TIs), com previsão de metas, indicadores, prazos, resultados esperados, matriz de responsabilidades e recursos a serem utilizados nas operações.
Em decisão do 20 de dezembro de 2024, Barroso deu prazo até 31 de janeiro de 2025 para que a União regulamentasse o poder de polícia da Funai. No despacho, o ministro sustenta que tomou essa decisão após a União não ter cumprido outra determinação sobre o tema, publicada dia 5 de março de 2024, mesmo com extensão de prazo até 21 outubro do ano passado. No processo, o governo federal alegou que os documentos e minutas referentes à homologação do poder de polícia da Funai estão sob o sigilo previsto na legislação pertinente.
A União se comprometia a publicar o documento até 31 de janeiro de 2025, mas pedia mais prazo de 60 dias. Em um despacho curto, além de não acatar os argumentos, Barroso foi taxativo: “Caso isso não ocorra, [a regulamentação], determino que todos os documentos preparatórios sejam anexados aos autos, inclusive os pareceres jurídicos dos órgãos envolvidos, ainda que na forma de petição sigilosa”.
Barroso reiterou que “a regulamentação do poder de polícia indigenista não esvazia a competência dos demais órgãos ambientais”. “Pelo contrário, Funai e Ibama podem exercer o poder de polícia em terras indígenas, de forma coordenada e colaborativa. Esse nível de coordenação é comumente exercido entre a União e os órgãos estaduais do Meio Ambiente, e não há razões para que isso não ocorra entre dois órgãos do mesmo nível federativo”, afirmou o ministro em seu despacho, de dezembro de 2024.
Atenção ao Vale do Javari
Ainda em 2020, quando a Apib ingressou com a ADPF 709, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) pediu para ingressar no feito como “amigo da Corte” (amicus curiae), alegando que “a região do Vale do Javari concentra o maior quantitativo de povos indígenas isolados e de recente contato do País”. Ponderou que tais povos são especialmente vulneráveis e têm necessidades específicas.
Em 5 de junho de 2022, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Philips foram brutalmente assassinados, no Vale do Javari. Seus corpos só foram localizados dez dias depois do desaparecimento. A perícia da Polícia Federal (PF) apontou que Dom Phillips foi morto por um tiro disparado por uma arma de caça e Bruno Pereira, por três tiros, um deles no rosto.
Os assassinatos trouxeram atenção para a região do Alto Solimões, na fronteira com o Peru, onde a Univaja executa um projeto de vigilância da região, desempenhado pelos próprios indígenas, do qual Bruno Pereira também colaborava e pagou com a vida por esse trabalho.
Medidas que a Funai pode adotar a partir do Decreto:
I – interditar ou restringir o acesso de terceiros a terras indígenas, por prazo determinado e prorrogável;
II – expedir notificação de medida cautelar a infratores, para lhes cientificar a respeito da infração cometida e estabelecer, se for o caso, prazo para sua cessação ou retirada voluntárias, sob pena da adoção subsequente de medidas administrativas ou judiciais coercitivas;
III – determinar a retirada compulsória de terceiros das terras indígenas quando houver evidência de prejuízo ou risco iminente para os povos ou para as terras indígenas;
IV – restringir o acesso e o trânsito de terceiros nas terras indígenas e nas áreas em que se constate a presença de indígenas isolados, nos termos do disposto no art. 7º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996;
V – solicitar a colaboração de autoridades de outros órgãos ou de entidades públicas de controle e repressão, respeitadas as respectivas competências legais;
VI – apreender bens ou lacrar instalações de particulares empregados na prática de infração; e
VII – realizar, excepcionalmente, a destruição, a inutilização ou a destinação de bens utilizados na prática de infração.