Andiroba. Foto: Natura

Mulheres ribeirinhas do Alto Araguari, no interior do Amapá, integram rede pioneira de produção baseada no uso de recursos naturais e no conhecimento ancestral da floresta. Formadas e transformadas pelos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, as paisagens da Amazônia são fruto da ação humana. A maior floresta tropical do planeta passou por um processo de construção ao longo de 12 mil anos. Serve de morada para 22% das espécies de plantas vasculares, 14% das aves, 9% dos mamíferos, 8% dos anfíbios e 18% dos peixes que habitam os trópicos. O registro anterior ao boom do desmatamento era de 390 bilhões de espécies arbóreas (2013) agrupadas em 16 mil espécies, das quais apenas 227 (1,4%), conhecidas como hiperdominantes, representam metade do total de árvores do bioma.

Nesse universo de superlativos, a região de fronteira entre as Florestas Nacional (Flona) e Estadual (Flota) do Amapá e o maior parque nacional do Brasil, o Montanhas do Tumucumaque, abriga comunidades que representam focos de resgate dos territórios pelos atores locais. No Alto Araguari, um grupo de mulheres de três gerações promove o extrativismo sustentável dos recursos naturais, garantindo renda e uma nova perspectiva para as famílias residentes.

A Associação Sementes do Araguari, fundada em 2020, revela sobre o quanto a ciência empírica tradicional praticada pelos povos da floresta é basilar para a manutenção da floresta em pé. “Eu sempre tive o sonho de ver a minha comunidade melhorar. Foram anos de luta para chegar até aqui”, relata a agroextrativista Arlete Pantoja, presidente da associação.

A salvaguarda dessas populações viabiliza a preservação do patrimônio biocultural amazônico e é um ponto de resistência contra modelos de ocupação predatórios e imediatistas que provocam atraso, caos, violência e destruição.

Segundo o arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, a Amazônia foi um polo importante de inovação cultural no passado. “Hoje o grande desafio é responder sobre como esses novos achados, essas novas hipóteses podem nos ajudar a ampliar o conceito do que é patrimônio cultural no Brasil”, diz.

Biocosméticos e produtos medicinais da floresta

Do extrato de frutos e plantas como andiroba, fava, pracaxi, breu-branco e copaíba, as agroextrativistas do Alto Araguari fabricam biocosméticos, tais como sabonetes, óleos, unguentos e pomadas. São produtos com alta concentração de propriedades medicinais. Possuem componentes anti-inflamatórios, antioxidantes e antibióticos naturais.

Farmacêutica do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), Therezinha de Jesus Soares dos Santos relata que a confecção dos cosméticos artesanais envolve um passo a passo imprescindível da coleta e extração ao comércio. “Nas oficinas do Farmácia da Terra [capacitação sobre beneficiamento dos extratos das plantas e sementes], que voltarei a ministrar em 2024, eu as orientei sobre a produção de fitoterápicos e fitocosméticos. Pretendemos aumentar a linha de produtos da Sementes, porém isso só acontecerá quando elas tiverem o local de sua sede adaptado a algumas normas básicas de boas práticas”, diz.

Povos guardiões

Atualmente, as agroextrativistas já adquiriram condições para produzir o ano inteiro. “Avançamos na construção do laboratório e da miniusina de beneficiamento; instalamos duas prensas; estufa; alojamento; e espaço para eventos e reuniões”, conta Arlete. Por se tratar de um trabalho manual, o processo exige o dobro de atenção e, sobretudo, o aporte de recursos para aquisição de maquinário e adequação do espaço físico reservado para o processamento. Por um lado, o cenário é favorável, pelo outro, falta incentivo. Portanto, as conquistas têm a dimensão de uma vida.

Com o apoio do Instituto Iepé e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Sementes do Araguari conseguiu aprovar projetos importantes. Entre eles, o Floresta Mais e o Fitoterápicos, financiados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Foram eleitas cinco espécies de plantas prioritárias por região: jaborandi, unha-de-gato, cipó-pucá, andiroba e copaíba. Um dos objetivos é o de inventariar e manejar as matas para o mapeamento das árvores nas áreas produtivas da Flota do Amapá.

“A copaibeira, por exemplo, tem bastante. Às vezes, encontram-se seis, até dez exemplares da árvore nos nossos terrenos”, explica Arlete, nascida e criada dentro da floresta. Embora a densidade populacional dessa espécie seja alta, é a andiroba o carro-chefe da associação. A última safra rendeu 4 toneladas da semente. “Com a estufa pronta, ainda temos mais de 1 mil quilos de andiroba estocados para venda. O sabonete é o que mais sai, mas há óleo envasado de sobra e logo chega a época da safra. Em abril já está caindo”.

De acordo com o The Science Panel for the Amazon (Spa), a busca por alternativas capazes de gerar renda e qualidade de vida para as comunidades passa pela produção de conhecimento com base nos saberes tradicionais. Ciência, tecnologia, inovação e planejamento estratégico cujo princípio esteja na reciprocidade e igualdade. Tal transição inclui o investimento em infraestrutura e novos mercados.

575 árvores cortadas por minuto

De um lado, há o uso de plantas e do fogo pelos povos da floresta e, do outro, a utilização do mesmo com o objetivo de desmatar. E o que se vê com as práticas de “agricultura moderna” é o avanço da conversão da floresta em campos para monocultivo. Hoje, o fogo ocorre com intensidade e frequência são maiores. Acontecem episódios repetidos de queima acontecendo nos mesmos lugares em intervalos de poucos anos.

As mudanças climáticas e o desmatamento aumentam o risco de incêndios criminosos ou naturais. Entre os nove países que integram a Pan-Amazônia, que inclui também Bolívia, Colômbia, Peru, Suriname, Venezuela, Equador e Guianas, o Brasil lidera a devastação da floresta.

Segundo dados do sistema Deter (Inpe) divulgados no indicador desenvolvido pela rede MapBiomas, até 19 de dezembro de 2023, a contabilização de árvores cortadas, no ano, ultrapassou 281.908.269. Apesar de reduzido, uma vez que, em novembro de 2022, o monitor marcava 558.453.525, a média é de 825.029 por dia e 575 por minuto. Índices ainda alarmantes, apesar do declínio em comparação aos anos anteriores.

Economia da floresta em pé

A economia da floresta em pé tem como base o modo de vida e o conhecimento ancestral dos habitantes da floresta. Essas pessoas buscam por iniciativas que estimulem a criação de políticas públicas e o investimento em tecnologia em prol de sua autonomia contra a predação do bioma, o desmatamento – causado, sobretudo, por queimadas criminosas.

O Amapá é o único estado do país com cerca de 70% de seu território coberto por áreas de proteção ambiental. No Alto Araguari, a comercialização dos biocosméticos acontece de acordo com a demanda. A associação recebe pedidos de várias partes do Brasil, como cidades de Minas Gerais e São Paulo. Possui pontos de venda espalhados pela capital, Macapá, além de stands em feiras e eventos que ocorrem, majoritariamente, na Amazônia.

“O que mais me motiva é perceber que a produção aumenta porque as pessoas gostam do que fazemos. Os retornos que recebemos são gratificantes. Sonhamos em expandir, abrir uma loja própria, mandar os produtos para todo o país e, acima de tudo, conseguir receber um salário mensal com o nosso projeto”, conclui Cauane Leal Nascimento, jovem agroextrativista associada ao Sementes desde 2020.

*A reportagem do portal Terra integra o projeto “Amazônia: fogo contra fogo” e foi produzida com o apoio do fundo para o jornalismo voltado a Florestas Tropicais, em parceria com o Pulitzer Center.

 

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