Desnutrição, verminoses e intoxicações por mercúrio estão entre os principais problemas sanitários enfrentados por indígenas no Brasil. A política de atenção à saúde indígena no país ainda é precária e os últimos anos foram especialmente mais difíceis devido aos cortes no orçamento, falta de assistência básica às comunidades e a pandemia de Covid-19, explica Weibe Tapeba, líder indígena nomeado pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, para comandar a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).
Em entrevista ao JOTA, ele diz que os Yanomami foram um dos povos mais afetados pela negligência do governo Bolsonaro e garante que sua prioridade imediata é instalar um gabinete de crise para tratar do caso devido ao cenário de extrema vulnerabilidade.
A SESAI é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e é também o órgão que cuida de serviços de atenção primária à saúde e ações de saneamento básico dentro dos territórios.
Tapeba disse que já está participando de reuniões com Trindade e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara (PSOL), para viabilizar um decreto de emergência sanitária. “Com o decreto queremos assegurar a contratação de serviços, aquisição de insumos e equipamentos necessários para atender os pacientes no território. Inclusive, com a mobilização da Força Nacional do SUS”, explica
A crise no território Yanomami é apenas um dos desafios herdados da gestão anterior. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que participou do Grupo de Trabalho de Transição da Saúde, questões orçamentárias e técnicas ainda precisam ser analisadas mais a fundo para que se tenha a real dimensão de tudo o que foi destruído e inoperado dentro da secretaria nos últimos anos.
“Um problema da transição foi não ter acesso às informações mais realistas da situação da saúde indígena. Algumas informações foram passadas sem embasamento, sem dados técnicos, sem documentos mais consistentes, além de informações que não foram repassadas”, revela Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
Segundo Karipuna, agora é preciso entender o grau dos problemas para retomar pautas importantes dentro da saúde indígena e amenizar os impactos sobre essa população.
Tapeba comenta que já foram identificadas medidas consideradas extremamente equivocadas e que serão revistas imediatamente. “Há uma orientação do núcleo jurídico da SESAI de não se poder realizar investimentos em áreas não homologadas. Ou seja, os indígenas sofrem duplamente, sofrem pela omissão e negligência do estado brasileiro, que não vinha demarcando os territórios, e sofrem também porque se impedia que houvesse assistência nessas comunidades”.
A situação dos servidores da SESAI também foi destacada por Tapeba como um dos retrocessos deixados pela gestão Bolsonaro. Ele cita casos de adoecimento mental, perseguição e assédio moral.
Prioridades da gestão
O novo secretário de saúde indígena afirma que assegurar que os contratos de prestação de serviço não sofram descontinuidade está no topo da sua lista de prioridades. “É fundamental manter os contratos, entre eles os contratos de transporte de pacientes para que seja possível a remoção de doentes graves para média e alta complexidade, caso contrário o resultado pode ser a morte”, ressalta.
Outra prioridade é ampliar os investimentos na área do saneamento básico e saneamento ambiental para garantir o acesso à água para consumo humano dentro dos territórios. “Muitos casos de doenças dentro do nosso território são ligados diretamente à falta de uma política de saneamento e isso está dentro do escopo da Secretaria Especial de Saúde Indígena”, pontua Tapeba. “Pretendemos ir atrás de incremento orçamentário para assegurar investimento nessa área”, explica.
Outra questão que será priorizada é o aperfeiçoamento do controle social. Segundo Tapeba, a SESAI quer assegurar o funcionamento dos conselhos locais e distritais de saúde e do Fórum Nacional de Presidentes dos Conselhos para que eles se tornem uma instância que “realmente cumpra com o papel de fiscalização, monitoramento e acompanhamento de ações de saúde nos territórios indígenas”.
A importância de ocupar espaços
O posicionamento do movimento indígena em relação a ocupar cargos dentro do governo mudou nos últimos anos, explica o coordenador executivo da Apib. Segundo Karipuna, existia um entendimento dentro do próprio movimento de não compor o governo para que a mobilização continuasse aguerrida. Porém, esse pensamento mudou com o passar do tempo e quadros técnicos e políticos foram formados por lideranças indígenas na última década.
“Hoje, o movimento indígena consegue tomar um posicionamento importante de se incorporar ao governo para ajudar de dentro na melhor forma de conduzir a política indigenista do estado brasileiro, seja na área da saúde, educação, na política de proteção territorial e na demarcação das terras indígenas, mas com a consciência de que teremos uma responsabilidade do lado aqui de fora, para manter o movimento combativo e alerta”, explica Karipuna.
Para Karipuna, esse novo cenário que se apresenta, com o movimento indígena ajudando a reconstruir as políticas de atenção aos povos originários, traz esperança de um “bem viver muito mais efetivo”.
“Não podemos dizer que apenas a mudança de governo vai cessar as inseguranças que estão acontecendo nos territórios, mas é um momento de esperança em que queremos contribuir muito e dialogar com a sociedade e com o próprio governo”, salienta o coordenador executivo da Apib.
Tapeba destaca que na edição de 2022 do acampamento Terra Livre foi feita uma discussão com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na ocasião candidato à presidência, sobre a necessidade dos povos indígenas do Brasil ocuparem espaços estratégicos no governo. “Lembro que eu fiz uma fala para o presidente Lula dizendo que a gente não queria somente ajudá-lo no voto ou na campanha eleitoral, a gente queria ajudá-lo a governar esse país”, recorda.
Weibe Tapeba é o primeiro indígena a liderar a SESAI, que foi criada em 2010. Karipuna comenta a relevância dessa conquista para os povos indígenas. “A importância passa para além do protagonismo e da simples ocupação dos espaços, é a real efetividade que se pode dar com a contribuição do movimento indígena na implementação de uma política indigenista de qualidade e mais próxima da realidade de todos os povos indígenas do Brasil”, ressalta.
Trajetória de Weibe Tapeba
Cearense, nascido na Aldeia dos Tapebas, Weibe Tapeba, 39 anos, é advogado e militante na causa indígena desde os 14 anos. Sua atuação começou dentro da sala de aula ao lado da tia, que era professora da aldeia. Ele a auxiliava no letramento da comunidade, que tinha mais de 90% de pessoas analfabetas.
Weibe foi professor, coordenador e diretor na escola da aldeia. Nesse período atuou na Comissão Nacional de Educação Indígena vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Em 2006, foi para a Funai e atuou como assistente técnico e coordenador regional substituto da Coordenação Regional Nordeste 2, na qual auxiliou povos indígenas no Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí e na Paraíba.
Ao sair da Funai, ingressou no Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza. Para fortalecer o projeto coletivo do seu povo e o acesso à justiça, Tapeba se formou em Direito e se tornou o primeiro indígena advogado no estado do Ceará.
Foi coordenador da Federação dos Povos Indígenas do Ceará e também atuou no departamento jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). Em 2015, foi delegado a escrever uma carta para todos os povos indígenas do Brasil. A carta foi denominada ‘Por um parlamento cada vez mais indigena’, e estimulava os povos indígenas a lançarem candidaturas para disputar os parlamentos municipais nas eleições de 2016.
Em 2016, filiado ao PT, concorreu ao cargo de vereador do município de Caucaia, no Ceará, e foi eleito. Em 2020, conseguiu a reeleição. Na área da saúde, fez parte do controle social da SESAI como conselheiro local e conselheiro distrital.
Atualmente, Tapeba faz parte da Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Ceará e integra o escritório de advocacia popular indígena, que é o primeiro escritório formado somente por indígenas. O advogado foi um dos nomes que compôs a lista tríplice enviada pela Apib ao presidente Lula para ocupar o Ministério dos Povos Indígenas, assumido por Sônia Guajajara.