Numa região de dimensões continentais e sem o trabalho permanente de vigilância das fronteiras, a Amazônia brasileira vem sendo tomada por facções criminosas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Além de contar com seus “soldados” recrutados nas periferias das cidades do Norte, o narcotráfico tem imposto uma nova lógica que vai muito além da cooptação de moradores de comunidades ribeirinhas e indígenas para assegurar o domínio das rotas fluviais e “picadas” no meio das matas que escoam a produção de drogas – sobretudo a cocaína.
Com suas terras encravadas na fronteira das Amazônias brasileira e peruana, o povo Ashaninka vive sob constante ameaça. Até a primeira metade da década dos anos 2000, madeireiros peruanos invadiam a Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônia, no município de Marechal Thaumaturgo (AC). Após intensa mobilização feita pelos indígenas, as autoridades brasileiras coibiram o roubo de madeira. Mas um outro problema também antigo – o narcotráfico na Amazônia -, não só se manteve, como foi ampliado.
“Em nossa comunidade, temos tido o papel de não permitir que isso se instale dentro de nosso território. Sabemos que corremos certo risco. Já fomos ameaçados várias vezes por ter essa postura. O que estamos vendo hoje nos assusta muito. Parece que está tudo liberado para matar, para dominar. Cada um resolve as coisas como quiser. É muito ruim essa sensação que a gente vive aqui”, conta Francisco Piyãko.
Uma das principais vozes do povo Ashaninka, Francisco Piyãko afirma que o trabalho de proteção territorial e de resistência às pressões do tráfico resulta em ameaças às lideranças. Os Ashaninka já chegaram a ser assediados por narcotraficantes para autorizar a construção de uma pista de pouso dentro de seu território, o que facilitaria a entrada no Brasil da cocaína peruana.
De acordo com Francisco Piyãko, a dinâmica do tráfico nas regiões de fronteira mudou nos últimos anos. Se antes o transporte da droga era feito por “mulas forasteiras”, que não eram conhecidas, hoje ele é feito pelos próprios moradores das comunidades. “Há pessoas envolvidas a ponto de não se sentir como uma mula, mas parte desse sistema. E nós ficamos cada vez mais vulneráveis porque o Estado não melhora a sua presença”, diz a liderança Ashaninka.
Para fazer o transporte da carga ilícita aos diferentes entrepostos amazônicos – até chegar aos grandes centros distribuidores e consumidores, em viagens que duram dias ou semanas, as “mulas” precisam parar para se alimentar e dormir.
As comunidades ribeirinhas acabam sendo usadas como pontos de “reabastecimento” para comer e descansar. Diante da ação intimidadora dos traficantes, as famílias se veem obrigadas a colaborar. Outros moradores são cooptados para atuar como “olheiros”, avisando sobre a presença de polícia, sendo recompensados financeiramente pelo trabalho.
Se antes a abordagem de cooptação dos nativos acontecia de forma mais sutil, hoje o “recrutamento” ocorre de forma intimidadora. Isso porque o crime se infiltrou em diferentes frentes.
“O mesmo trator que é usado para abrir estrada para puxar as madeiras derrubada dentro da mata é usado para abrir a pista onde vai pousar o avião que transporta a droga. As mesmas famílias que têm seus roçados de subsistência são cooptadas para também plantar a coca, processar e transportar a cocaína para o lado do Brasil”, explica Francisco Piyãko. Essa conexão é observada pelos Ashaninka mais do outro lado da fronteira, no Peru, mas também já ocorre no território brasileiro.
O crime organizado tende a expandir ainda mais seu poder de controle na faixa de fronteira diante do projeto do governo do Acre para a construção de uma nova rodovia entre o Brasil e o Peru. Trata-se da construção da estrada entre a cidade acreana de Cruzeiro do Sul e Pucallpa, capital do departamento de Ucayali. Para especialistas, além de fortalecer o narcotráfico, a rodovia representa um dos maiores desastres ambientais e sociais para uma das áreas mais intocadas da Amazônia.
Os assassinatos do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, ocorridos em junho na cidade fronteiriça de Atalaia do Norte, no Amazonas, expuseram ao mundo a fragilidade dos povos originários em meio a um território dominado pelo crime. Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado” – assassino confesso das vítimas –, seu irmão, Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”, e Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha”, foram denunciados pelo Ministério Público Federal por duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Segundo a investigação, o grupo decidiu executar Bruno e Dom por causa da fiscalização que o indigenista promovia contra a pesca ilegal no entorno da TI Vale do Javari. Suspeito de mandante do crime, o peruano Rubens Villar Coelho, o “Colômbia”, é apontado por testemunhas como envolvido com o tráfico de drogas na região.
Em maio, um mês antes de sua morte, Dom Phillips, que escrevia um livro sobre soluções para os problemas da Amazônia, percorreu o rio Amônea até a comunidade Apiwtxa, no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, para conhecer o trabalho dos indígenas do povo Ashaninka na preservação do território. “Ele estava muito entusiasmado com a escrita do livro e mostrava uma preocupação em ajudar a Amazônia. Ele tinha clareza do que estava fazendo e estava familiarizado com o assunto”, afirmou Francisco Piyãko, que recebeu o jornalista na comunidade.
Regiões de fronteira
Cidades da região Norte viram explodir a violência urbana, marcada por uma guerra sangrenta pelo controle das periferias. Esses conflitos avançaram pelas comunidades rurais, ribeirinhas e aldeias. Roubos a casas e embarcações, além do furto de combustível e motores passaram a ser problemas recorrentes. O narcotráfico também se infiltrou em atividades como o garimpo, o roubo de madeira, a pesca e caça ilegais e a grilagem de terras. O objetivo é lavar o dinheiro da droga.
“Esse mercado ilegal das drogas quase sempre está ligado a outros mercados ilegais e legais. O dinheiro levantado com o tráfico de drogas pode ser investido, dependendo dos interesses, em mercado de pesca, de madeira, de minérios, no garimpo, no mercado de terras, e pode ser investido em estabelecimentos comerciais. Na medida em que você já está dentro de um mercado ilegal, geralmente é mais fácil você acessar outro mercado ilegal”, explica o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Fabio Magalhães Candotti.
Candotti lembra que a região amazônica vem sendo utilizada como rota do tráfico de drogas “há muito tempo”, mas nas últimas duas décadas passou a ser também um local de vendas e consumo. “É nesse período também que começa a aparecer o que a gente chama de facções”, diz o sociólogo.
Outro ponto lembrado por Candotti é a atuação dos “braços armados” dessas organizações criminosas que oferecem uma espécie de “segurança privada” para a prática dessas atividades ilegais. Em Roraima, o Primeiro Comando da Capital (PCC) atua na proteção dos garimpos que atuam no estado, incluindo dentro da TI Yanomami. “Não há garimpo ilegal sem armas, e não há garimpo ilegal sem algum tipo de rede de proteção.”
“Soldados das facções”
Em algumas regiões do Acre, há relatos do recrutamento de jovens indígenas para trabalharem como “soldados” das facções. Em outras, “soldados” não-indígenas passam a morar nas aldeias ao se casar com as mulheres indígenas.
O promotor Bernardo Albano, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Acre, lembra que as facções surgiram no início deste século em São Paulo e no Rio de Janeiro, avançando para a região Norte a partir de 2011. Organizações como o PCC, de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV) começaram a estampar suas siglas nos muros de Manaus e Rio Branco, e logo inspiraram a criação de grupos locais como o Bonde dos 13 (B13), no Acre, e a Família do Norte (FDN), no Amazonas.
“A chegada à região Norte das facções antigamente limitadas ao Sudeste gerou uma mudança tanto na dinâmica criminosa local como na replicação, por assim dizer, do modelo de facção”, explica o promotor. “Trata-se de uma fronteira com milhares de quilômetros de florestas intocadas. Aqui no Acre, temos uma rota consolidada mista que junta o rio Juruá e as picadas de selva”, diz Albano, referindo-se à região de fronteira entre o Acre e o Peru, no extremo Oeste brasileiro.
O estrago da presença do crime organizado é ainda maior quando a trilha do tráfico passa por aldeias de povos indígenas e contamina tradições milenares. “Parte destes corredores logísticos vai passar por áreas indígenas envolvendo até mesmo as lideranças que tinham a tradição de resolver conflitos entre moradores”, analisa Albano.
O promotor defende um combate às facções na região Norte por meio da prevenção primária, de educação e saúde, que dificulte a cooptação das populações economicamente vulneráveis; pelo investimento em recursos humanos e tecnológicos para otimizar a fiscalização e pela repressão e uma reforma no sistema prisional que reduza a reincidência.
Além disso, Albano afirma que o enfrentamento ao crime organizado tem de atuar de forma interestadual porque o tráfico estabelece uma cadeia logística que começa pelas picadas e pelos rios e vai desembocar no complexo aeroportuário dos grandes centros. “O crime usa esta rede logística consolidada para o comércio local e para o tráfico internacional. Você vai identificar várias apreensões nos portos do Brasil como em Antuérpia, na Bélgica em navios estrangeiros que partiram do Brasil”, lembra.
Produtores de coca
O delegado aposentado da PF Mauro Sposito, que atuou na Amazônia por mais de duas décadas, acredita que o problema é internacional, pois tem origem externa, nos países produtores de coca. “Desde 2010 a Polícia Federal vem denunciando o incremento de uma nova zona cocaleira no Peru, junto à fronteira do Brasil. Já foi denunciado, inclusive, no Congresso. Então o que precisa? Talvez uma ação diplomática entre os governos destes países”, diz ele.
De acordo com o delegado, em 2015, quando se aposentou, havia uma área de cultivo estimada em 12 mil hectares no Departamento de Loreto, no Peru, que faz fronteira com o Amazonas, junto ao rio Javari, palco do desaparecimento de Dom e Bruno. “Na realidade é um crescimento muito grande desta zona cocaleira, atualmente estimada em 25 mil hectares”, afirma ele com base num estudo do Instituto Villas Boas. “Ali ninguém planta coca para mascar, é para fazer cocaína e o maior cliente é o Brasil, um mercado muito grande para eles.”
O delegado explica que as facções carioca e paulista se completam, mas também se rivalizam. Sposito lembra que uma guerra entre facções acabou com a supremacia do CV sobre a FDN, facção que nasceu nos presídios de Manaus. Hoje, o Comando Vermelho monopoliza o transporte de drogas pelos rios no interior da Amazônia, enquanto o PCC tem o controle do transporte aéreo a partir da fronteira com o Paraguai.
Sposito afirma que a cooptação de indígenas pelas facções vai além da simples passagem por seus territórios. Outro problema que deveria importar, de acordo com o delegado, é o contrabando de madeira do Brasil para o Peru pelas águas do Javari. “Eles cortam as toras no Brasil e as jogam no rio, uma vez nas águas não tem mais como certificar se é do Brasil ou do Peru”, explica.
Os Ashaninka são pressionados
A pouca presença do Estado nas regiões mais distantes da Amazônia se dá por meio dos Pelotões Especiais de Fronteira (PEF), do Exército. Nas regiões acessíveis por rios, todas as embarcações devem parar e os passageiros são identificados. As revistas na carga transportada ocorrem, mas não em todas as ocasiões.
Um desses pelotões é o de São Joaquim, localizado às margens do rio Moa, no município de Mâncio Lima, Vale do Juruá, extremo oeste do Acre. É por ele que se tem acesso ao Parque Nacional da Serra do Divisor e às terras indígenas Nawa e Nukini. Tanto o Moa quanto muito dos afluentes têm suas cabeceiras localizadas no Peru. É através deles que chega ao lado brasileiro a cocaína produzida nos laboratórios na Amazônia peruana.
Após percorrer toda a extensão do Moa, a carga vai desaguar no rio Juruá, um dos mais importantes afluentes do Solimões. Parte da droga fica na cidade acreana de Cruzeiro do Sul, enquanto outra segue rio abaixo com destino a Manaus – e de lá para uma distribuição mais ampla. Do Acre, a droga segue caminho Brasil adentro a partir das rodovias que cruzam o Estado. A bacia do Juruá é vizinha ao Vale do Javari, que também faz parte dessa rota internacional de drogas.
O que dizem as autoridades
A reportagem entrou em contato com a Superintendência da Polícia Federal no Acre e no Amazonas para saber quais ações desenvolvem no combate à atuação das facções criminosas, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem. O Comando Militar da Amazônia (CMA), do Exército, também foi questionado sobre trabalhos de vigilância fronteiriça, mas não houve manifestações.
Desde 2019, o Acre tem a atuação do Gefron, o Grupo Especial de Fronteira, composto por membros de todos os órgãos de Segurança Pública dos estados. O grupo afirma atuar no policiamento das áreas de fronteira seca e das formadas pelos rios. Diretor operacional da Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Acre, o coronel da Polícia Militar Ulisses Araújo afirma que essa atuação tem contribuído para reduzir os índices de criminalidade no Estado, em especial a queda nas taxas de homicídio.