O povo Yanomami tem resistido a violentos e constantes ataques em suas terras e temem a possibilidade de um conflito direto com invasores. No local, mais de 20 mil garimpeiros se instalaram nos últimos anos. O território é homologado desde 1992, o que dá aos indígenas o direito à proteção do território, localizado entre os estados de Roraima e Amazonas. O que se vê, no entanto, é o abandono da fiscalização e o consequente aumento das invasões.
No último dia 2 de outubro, a Hutukara Associação Yanomami denunciou o assassinato de uma liderança. O indígena identificado como Cleomar foi morto a tiros. Em nota, a associação contou que os disparos foram feitos por garimpeiros que pertencem a facções. O motivo ainda não foi esclarecido, mas os indígenas dizem que uma das suspeitas é de que Cleomar estaria sendo acusado de furto pelos garimpeiros. No mesmo ataque, um adolescente indígena também foi baleado, mas sobreviveu. A bala atingiu seu rosto e passou por sua nuca.
Em um relatório realizado em parceria com o Instituto Socioambiental e lançado em abril deste ano, somente em 2021, os Yanomamis contabilizaram 15 ataques à Comunidade Indígena Palimiu e registraram, pela primeira vez, a presença de narcotraficantes ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC) atuando na região. Segundo investigação da Divisão de Inteligência e Captura (Dicap) do sistema prisional de Roraima, os criminosos são contratados como seguranças e vigias de garimpos e acabam entrando em conflito entre si, por acusações de roubos. Com a presença deles, o uso de drogas também aumentou no território.
O desmatamento, que entre 2010 e 2021 retirou 1.556 hectares da terra Yanomami, também é mais um dos sintomas de como os territórios indígenas foram abandonados pelos órgãos de proteção do governo nos últimos anos. A mineração é a responsável por grande parte dessas violações e cresceu na gestão do governo de Jair Bolsonaro.
De acordo com dados do Amazônia Minada, projeto do InfoAmazonia que monitora os requerimentos para exploração de minérios registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM), a TI Yanomami é a 3ª no ranking de pedidos de mineração. Já foram solicitados 3.676.125 hectares. São 501 pedidos desde 1974 e estão válidos. Entre 2018 e 2022 foram 13 solicitações. Em 2017 apenas duas e em 2016 apenas uma.
Nesta entrevista, Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami e porta-voz das lideranças Yanomamis, explica os danos causados pelo garimpo ilegal, a forma como o narcotráfico se estabeleceu na terra, os últimos acontecimentos e o que é necessário para evitar um confronto ainda maior, que pode acabar em uma guerra entre yanomamis e invasores.
InfoAmazonia — São constantes os conflitos e ataques que vocês vivenciam. Você acredita que existe a possibilidade de ocorrer um confronto mais grave contra vocês?
Dário Kopenawa — Eu represento quase 30 mil yanomami e 363 aldeias do meu território. Nós estamos com muito medo disso, porque os invasores entram com armamentos muito pesados. São metralhadoras, pistolas, fuzis. São armas de guerra que já estão na terra, já entraram. Eu já avisei os guerreiros, porque eles pedem permissão, mas avisei que se isso acontecer [um conflito generalizado], nós vamos morrer. Não podemos ir com flechas e eles com forte armamento. Se isso ocorrer, vamos morrer. Nós podemos fazer denúncias, isso podemos fazer, mas nós lideranças estamos muito preocupadas. Os guerreiros querem confrontar, mas não é assim. Vai ser um derramamento de sangue muito grande. Por isso estamos pedindo a desintrusão completa. Estamos tentando controlar e evitar esse confronto, tentando e pedindo ajuda das autoridades, mas temos muito medo do que pode acontecer. Os guerreiros querem confrontar, mas não é assim. Vai ser um derramamento de sangue muito grande.
Sobre a presença do narcotráfico na TI Yanommami, você pode falar sobre a relação desses criminosos com o garimpo ilegal?
As denúncias que escutamos dos yanomamis é que existem criminosos ligados ao PCC dentro da nossa terra. Isso nós já denunciamos para a Funai e Polícia Federal. Eles estão lá dentro e cresce a circulação de maconha, cocaína, álcool. Os grandes empresários, donos das balsas de garimpo, contratam essas pessoas para vigiar as coisas deles . E aqui nós temos a fronteira com a Venezuela. O exército brasileiro tem uma fronteira, mas eles não fazem monitoramento de segurança e soberania. Tem garimpo venezuelano, garimpo brasileiro. Eles invadem livremente.
Você acredita que esse último ataque, em que um yanomami foi morto e outro adolescente ficou ferido, teve relação com narcotraficantes?
Nossas lideranças estão investigando, os relatos dizem que sim. Quando recebemos essa denúncia nós fomos até a aldeia, fizemos fotografias do adolescente que foi baleado. E denunciamos que pode ter sido ação de narcotraficantes, precisa ser investigado. O que sabemos até agora é que ele foi atacado por um grande grupo de garimpeiros, que chegaram em dois barcos, pilotados por dois garimpeiros chamados Lourinho e Palito. Eles dispararam contra os yanomami. Os parentes tentaram fugir se jogando no rio, mas Cleomar não conseguiu. Um jovem de 15 anos foi atingido e também foi levado ao hospital. Ele sobreviveu. Uma das suspeitas do motivo é o sumiço de uma caixa de cachaça e da acusação de furto. Os garimpeiros levam drogas para o nosso território e oferecem aos yanomami.
Na última semana, o Governo Federal divulgou que houve uma operação na TI Yanomami, que durou 24 dias e prendeu 16 pessoas. Também foram apreendidas aeronaves, embarcações e combustíveis. Como vocês avaliam essas ações?
O que nós queremos é uma operação regional, que faça a desintrusão completa e a fiscalização da nossa terra. Isso (a operação) não resolverá. É apenas uma estratégia do governo para dizer que está fazendo algo, porque estamos cobrando muito. Mas o que precisamos é eliminar o garimpo ilegal e isso não está acontecendo. Uma semana depois dessas prisões já tem mais 20 garimpeiros lá. Eu não sou contra operações, mas na minha opinião é um desperdício, porque é muito gasto e não tem muito resultado. Tem dois anos que fazem operações assim, apreendem cocaína, muita gasolina, as pessoas são presas, prestam depoimento e depois voltam. Esses caras não ficam presos de verdade.
Qual a participação do governo Bolsonaro neste contexto de invasões e conflitos na TI Yanomami?
Bolsonaro sozinho não teria poder. Os brancos votaram em pessoas ruins, para violar o direito brasileiro, incluindo dos povos indígenas. Por isso o fortalecimento dos invasores nos nossos territórios. É o desmatamento, a poluição, a pobreza nas cidades, assassinatos dos indígenas. Muita gente morrendo. Ele (Bolsonaro) abriu os canais dos invasores. Ele defende o garimpo ilegal. O Presidente da República defende criminosos. Ele não tem governabilidade, quebra lei brasileira, viola a constituição. É uma pessoa ruim, não respeita a população brasileira. Como os brancos falam, ele não conhece a democracia. Ele quer matar a democracia. Eu critico os eleitores e critico o governo Bolsonaro. Ele está sujando e cometendo crimes contra a humanidade. O Brasil derramou sangue dos negros, não indígenas, quilombolas, indígenas. O Brasil nosso está cheio de sangue porque a gestão do governo Bolsonaro não tem segurança com a população brasileira. A gestão do Bolsonaro derramou muito sangue no Brasil, essa é a opinião do povo Yanomami.
O Presidente da República defende criminosos. Ele não tem governabilidade, quebra lei brasileira, viola a constituição. É uma pessoa ruim, não respeita a população brasileira. Em nota recente vocês também alertaram que outra medida protetiva foi tirada de vocês. As Bases de Proteção Etnoambiental que existiam na TI foram destruídas?
Isso nós pedimos de novo na carta sobre o assassinato do Cleomar. Pedimos de novo porque em alguns pontos essas bases ainda não foram construídas. É isso o que falo sobre a desintrusão e a fiscalização. Precisamos coibir a entrada dos invasores. Há quase dois anos estamos pedindo uma base na Comunidade Korekorema, que é muito movimentada por garimpo ilegal. Esse ano de novo isso não foi construído. Essa comunidade já foi atacada diversas vezes, em junho do ano passado os yanomami foram cercados por balas e bombas de gás. Então nós precisamos que as políticas indigenistas voltem a funcionar.
Na última semana vocês também divulgaram uma nota informando a morte de nove crianças, por diarreia e malária. Sei que vocês realizaram reuniões. Quais foram os resultados delas?
Malária tem cura. Diarreia tem cura. Desnutrição tem cura. Mas aqui nós não temos remédios. Falta remédio e falta tratamento. São os próprios garimpeiros que estão sujando nossos rios, trazendo doenças, contaminando o solo, transmitindo tudo de ruim. Essas nove crianças foram as que conseguimos investigar, mas existem outros casos em outras comunidades. Nós perguntamos nas reuniões e escutamos relatos ‘ah, na minha comunidade morreram cinco’, ‘na minha morreram três’. Faltam profissionais e falta organização dos distritos de saúde. É muita irresponsabilidade. O mercúrio está matando nossas crianças. Não tem remédio por causa da corrupção em Roraima.
O mercúrio está matando nossas crianças. Não tem remédio por causa da corrupção em Roraima. Como essa corrupção se dá?
Corrupção que digo é o desvio de recurso da saúde. Se não tem corrupção, a saúde está bem. As crianças não estariam morrendo. Teria remédio, teria dipirona, teria remédio de verme, teria remédio de cobra, tudo abastecido. Eles desviam remédio, desviam recursos e por isso nós não temos assistência. É disso que falo sobre corrupção.
Dário, quando você era criança você vivenciou o massacre do Haximu, em que 16 yanomamis foram assassinados. Depois desse período, a terra de vocês passou por um momento em que os intrusos eram em menor número. Com o retorno do garimpo ilegal, o que mudou na tua vida cotidiana dentro da aldeia?
Na minha infância eu não vi o meu povo crescendo de forma saudável. Eu vi muita dor, muito sofrimento. Vinte anos atrás o garimpo ilegal acabou, porque nosso território foi demarcado. Foi o melhor momento nas nossas aldeias, a população cresceu muito, nossas crianças estavam saudáveis, eu passei a estudar, conhecer as sociedades dos meus parentes e também dos brancos. Foi a vitória da nossa demarcação. Eu não sabia que o que eu vi na minha infância e o conhecimento que eu tive seriam importantes para a nossa luta agora. Mas depois eu percebi que me tornei um ativista, entrei nas redes sociais, comecei a falar e pedir pelo nosso povo. O garimpo voltou depois de 20 anos e parece que voltamos pra década de 80, quando eu era criança. Esse problema cresceu de novo. Estamos sendo ameaçados, perseguidos, muito sangue derramado. Agora eu sei que o que eu vivi está servindo para eu fazer essas denúncias e me tornar porta voz das minhas comunidades.