Documentos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) obtidos pela Folha apontam uma nova ofensiva da cúpula do órgão por prescrição de multas ambientais e o risco de a iniciativa atingir 45 mil processos, cujas autuações a infratores somam R$ 18,8 bilhões.
Um parecer da Procuradoria Federal junto ao Ibama, do último dia 27, afirma que a autoridade responsável pelo julgamento de recursos vem declarando a prescrição de multas por entender que determinados despachos nos processos não interrompem a contagem de prazos para prescrição.
A prescrição é a impossibilidade de punição ao infrator em razão da paralisia dos autos num determinado período. Despachos relacionados à movimentação dos processos acabavam por blindá-los de prescrição, mas um novo entendimento vem sendo aplicado no julgamento de recursos.
Segundo instrução normativa vigente sobre apuração de infrações ambientais, o julgamento de um recurso no Ibama é competência do presidente do órgão. O cargo é ocupado por Eduardo Fortunato Bim, posto na função pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (PL).
Salles foi demitido do ministério em junho de 2021, um mês após deflagração de operação da PF (Polícia Federal) que investigou a suposta participação do ex-ministro em crimes de facilitação de contrabando de madeira da Amazônia. Bim chegou a ser afastado do cargo por 90 dias pelo STF (Supremo Tribunal Federal), no âmbito da mesma operação —ele retornou ao cargo em seguida.
Os dois dão vazão à iniciativa do presidente Jair Bolsonaro (PL) de esvaziar os órgãos de fiscalização ambiental.
Bolsonaro defende que haja menos multas e atuou nesse sentido ao longo do mandato. A promessa foi reforçada na disputa pela reeleição. No domingo (2), Salles foi eleito deputado federal por São Paulo —o quarto mais votado, com 640,9 mil votos.
O parecer jurídico da Procuradoria Federal junto ao Ibama afirma que a decisão de declarar a prescrição de multas, com base no argumento de que despachos simples de “mero expediente” não interrompem os prazos prescricionais, contraria entendimento vigente no órgão, expresso em uma orientação normativa de 2009, atualizada em 2014.
Segundo a Procuradoria Federal, atos ordinários de um processo sobre infrações ambientais, relacionados à movimentação dos autos, devem interromper a prescrição.
A presidência do Ibama vem aplicando entendimento diferente e diz se basear em precedentes julgados por TRFs (Tribunais Regionais Federais). A chamada prescrição intercorrente é aplicada com o argumento de que somente atos efetivos no processo, voltados à sua instrução, interromperiam a contagem do prazo para prescrição.
“O Ibama acompanha as jurisprudências recentemente atualizadas dos TRFs de 1ª, 3ª, 4ª e 5ª regiões, bem como a do STJ (Superior Tribunal de Justiça), referente ao tema em questão”, disse o órgão, em nota. O instituto não respondeu às perguntas sobre o normativo que segue vigente, nem sobre quantas multas já foram consideradas prescritas em razão do entendimento aplicado.
Pelas normas em vigência, a prescrição intercorrente começa a ser contada a partir do momento em que o auto de infração é lavrado. O prazo é de três anos, para que não haja mais possibilidades de punição em razão da falta de movimentação do processo.
Para subsidiar uma análise sobre a nova ofensiva de derrubada das multas ambientais, a Procuradoria Federal pediu ao setor responsável do Ibama —o Cenpsa (Centro Nacional do Processo Sancionador Ambiental)— um levantamento de possíveis impactos em caso de aplicação maciça do entendimento sobre prescrição.
Em um documento de 8 de setembro, coordenadores da unidade do Ibama afirmaram que 45 mil processos têm “elevada probabilidade de serem atingidos pela prescrição”, caso os chamados meros despachos não sejam capazes de interromper a prescrição.
Esse é o total de processos encaminhados para instrução e julgamento antes de um decreto de 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, que instituiu a conciliação ambiental como uma etapa a mais para enfraquecimento da fiscalização ambiental.
Segundo o documento, esses 45 mil processos eram instruídos nos estados e foram encaminhados a uma equipe nacional de instrução. Eles equivalem a cerca de 70% do total de autos ainda em fase de instrução, conforme o documento.
O valor nominal das multas, sem atualização monetária, é de R$ 18,8 bilhões, segundo cálculo da equipe técnica, “o que corresponde a cerca de 75% do valor total do passivo de processos”.
A ofensiva por invalidação de multas ambientais se soma a outras iniciativas da gestão de Eduardo Bim no Ibama, reveladas pela Folha.
Em 13 de março, uma reportagem mostrou que um documento do próprio órgão apontou risco de prescrição de mais de 5.000 autos de infração ambiental lavrados no governo Bolsonaro, em razão da incapacidade de processamento dos autos para encaminhamento a julgamento.
No dia 30 do mesmo mês, outra reportagem revelou que um despacho assinado por Bim anula etapas de processos de infração ambiental e amplia as possibilidades de prescrição das multas.
O presidente do Ibama considerou inválida a notificação de infratores por edital para a apresentação de alegações finais nos processos, nos casos em que seria possível localizar os autuados. Ele disse ter se baseado em jurisprudências dos TRFs, do STJ e da AGU (Advocacia-Geral da União).
Técnicos do Ibama apontam que o despacho de Bim deve ter efeito sobre milhares de processos. O próprio presidente do órgão afirmou, no documento, que a maioria das unidades do Ibama adotou como prática a intimação por edital para as alegações finais.
O novo entendimento também contraria um parecer da Procuradoria Federal do Ibama, vigente desde 2011, que diz que a apresentação de alegações finais a partir de notificação por edital não afronta artigos da lei que regula o processo administrativo na esfera pública federal.
“A nulidade da intimação gera a anulação de todos os atos processuais subsequentes, que não surtem efeitos jurídicos, nem mesmo para interromper eventual prescrição da pretensão punitiva ou da intercorrente, pois não se admite que atos nulos gerem efeito interruptivo da prescrição”, afirmou Bim no documento de março.
Questões paralelas à cobrança da multa, como embargos, demolições e apreensões, também não interrompem a prescrição, decidiu o presidente do Ibama.