O PCC (Primeiro Comando da Capital) está atuando em áreas de garimpo no rio Uraricoera, em Roraima. A migração dos criminosos começou em 2018, ganhou corpo no ano seguinte e hoje há integrantes da facção controlando trechos de terra ianomâmi. Além de tráfico de drogas, a organização explora casas de prostituição, venda de gasolina, alimentos, bebidas e segurança particular.
As informações sobre a existência de células do PCC em garimpos de Roraima foram repassadas ao UOL por cinco autoridades de segurança pública – um delegado, o chefe de inteligência do sistema prisional e três agentes que preferiram não se identificar. Os relatos foram confirmados por uma liderança ianomâmi e um garimpeiro, que falou sob condição de anonimato, e que compara algumas áreas da floresta amazônica às favelas do Rio de Janeiro, tamanho o domínio dos traficantes.
Segundo Roney Cruz, chefe da Dicap (Divisão de Inteligência e Captura do Sistema Prisional de Roraima), o PCC chegou a ter um barco atracado no rio, conhecido como “funerária”, usado em missões de morte. Além de relatos dessa natureza, as autoridades de segurança pública enviaram ao UOL informes de inteligência com o nome e/ou apelido de criminosos ligados ao garimpo. Também foram entregues as fichas de batismo destes criminosos na facção. Por último, foram fornecidas imagens e detalhes da atuação da organização criminosa no rio Uraricoera.
De acordo com o chefe da divisão de inteligência, cerca de 25 foragidos filiados ao PCC estão em garimpos distantes três dias de barco de Boa Vista. Roney não sabe estimar o total de batizados na facção agindo nesses pontos.
Fuga rumo ao ouro
Atividade bruta praticada por homens estilo Charles Bronson e Chuck Norris, o garimpo tem leis criadas com base em costumes.
O indivíduo interessado em explorar uma região de mata simplesmente coloca uma placa com seu nome e fica. Mas o garimpeiro que conversou com UOL declarou que, nos trechos do Uraricoera dominados pelo PCC, tal regra deixou de vigorar. Ninguém procura ouro sem fechar acordo com a facção.
O envolvimento do grupo com o garimpo começou em 2018. Naquele ano, as cadeias de Roraima viveram um caos e houve quatro fugas em massa. Na primeira delas, em janeiro, escapou Endson da Silva Oliveira, o Bebezão. O chefe da divisão de inteligência do sistema prisional afirma que ele era o “sintonia geral do sistema”, um dos três postos mais importantes do PCC em Roraima.
O criminoso foi “chapado” (batizado) na PAMC (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo), maior cadeia de Roraima, em 10 de junho de 2015. Seu padrinho foi Ozélio de Oliveira, um dos sequestradores de Wellington Camargo, irmão de Zezé di Camargo e Luciano, em 1999.
Quando o PCC se estabeleceu em Roraima, em 2013, Ozélio estava preso no Paraná e ocupava o cargo de condutor, responsável por repassar a ideologia da facção à organização que nascia em Roraima. Com tal padrinho, Bebezão sabia que seria um dos principais alvos após a fuga em massa e buscou refúgio no garimpo.
O esconderijo se mostraria uma oportunidade de negócios. “Bebezão montou uma equipe para levar integrantes do PCC para o garimpo durante as saidinhas”, declara Roney.
Novo ramo de negócio
Como grupo criminoso hegemônico em Roraima, a expansão do PCC para o garimpo alterou a configuração do crime no estado.
Ex-delegado-geral da Polícia Civil e atual responsável pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, Marcos Lázaro Gomes afirma que o garimpo no rio Uraricoera se tornou mais vantajoso que a venda de drogas no varejo. A mudança de rota fez reduzir bastante a quantidade de filiados ao PCC envolvidos com o microtráfico.
Por este motivo, é cada vez mais comum a presença de venezuelanos nas biqueiras. A situação resultou na importação da guerra de facções do país estrangeiro, que agora também se digladiam em Boa Vista. A consequência são corpos esquartejados abandonados em áreas públicas.
Longe deste mundo cão, as atividades do PCC relacionadas ao ouro são uma oportunidade de fazer dinheiro com risco menor de prisão, pois estão distante da capital. O skank e o crack que chegam da Venezuela são vendidos no garimpo, e a partir de 2019 os criminosos passaram a oferecer produtos de primeira necessidade aos garimpeiros, como alimentos, bebidas e combustível. O portfólio de atuação incorporou ainda a prostituição.
“No garimpo, um pequeno grupo assume uma currutela [bar de beira de rio com prostitutas, bebida e música] sem medo da polícia”
Capitalizados, os filiados à facção montam balsas para procurar ouro. O equipamento que draga o leito do rio custa a partir de R$ 60 mil. O delegado diz que o ouro é vendido na Venezuela, Guiana ou “esquentado” de forma ilegal em outros estados brasileiros, como se viesse de pontos autorizados de mineração.
Doutrinado para o crime
Bebezão se manteve à frente dessa estrutura enquanto permaneceu longe de Boa Vista. Mas ele visitou a cidade na noite de 15 de fevereiro de 2021 e acabou cercado por policiais. Morreu na troca de tiros, aos 28 anos. Nas informações repassadas à imprensa local, os agentes de segurança pública mencionaram sua ligação com o garimpo.
O posto de articulador do PCC no rio Uraricoera passou para Emerson Silva de Oliveira, 31, o Gazela. Irmão mais velho do ex-líder, ele não durou muito no cargo. Foi até uma ilha no trecho do rio que passa por Amajari (RR) para cobrar o suposto furto de um motor de barco. Houve tiroteio com um homem de 49 anos e o filho dele apareceu por trás, atirando.
Gazela morreu em 8 de dezembro de 2021. Um comparsa foi baleado e acabou preso. Na casa do criminoso foram encontrados R$ 23 mil e maquinário para extração de ouro. O integrante do PCC declarou no depoimento que o dinheiro tinha origem no garimpo e seria dividido com Emerson.
Antes de serem mortos, os irmãos deixaram estruturadas as atividades da facção numa longa faixa do rio Uraricoera. Ela começa na Estação Ecológica de Maracá e avança no sentido da fronteira com a Venezuela, invadindo a terra indígena.
Mas os agentes de segurança pública ressaltam que a região é imensa e o PCC de Roraima está longe de ter integrantes para controlar todos os locais de garimpo.
PCC em solo indígena
A presença da organização criminosa em terra ianomâmi é confirmada pelo garimpeiro que conversou com TAB e pelo chefe da divisão de inteligência do sistema prisional.
“O PCC tem currutela [casa de prostituição] na área ianomâmi na região do Palimiú”, declara Roney sobre uma comunidade às margens do rio Uraricoera que sofreu ataques a tiros por parte de garimpeiros.
A existência de integrantes da facção também é confirmada por Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ecoana. Ele conta que, em maio de 2021, foi montada uma barreira sanitária por causa do avanço da covid-19, atitude que irritou o PCC. “Eles eram responsáveis por carregamento de gasolina, armamento, mercadorias e foram para cima. Chegaram atirando.”
Junior Yanomami afirma que as armas usadas não eram de caça, mas “tinham padrão militar” e incluíam pistolas e fuzis. Um vídeo compartilhado nas redes sociais mostrou um grupo armado, o narrador ameaçando indígenas e terminando o discurso dizendo “nós é a guerra, neguinho”.
A liderança indígena acrescenta que as ações de intimidação duraram até julho e tiros contra a comunidade no Palimiú voltaram a ocorrer em mais duas ocasiões.
O governo de Roraima alegou que as forças de segurança estadual não têm amparo legal para atuar. A Funai (Fundação Nacional do Índio) respondeu que informações sobre atividades criminais só podem ser prestadas pelos órgãos de segurança pública competentes. A Polícia Federal foi procurada por WhatsApp, e-mail e ligações telefônicas e não respondeu aos pedidos de posicionamento.
A origem do mal
A chegada do PCC a Roraima tem relação com a transferência de lideranças de uma extinta facção local, o PCM (Primeiro Comando da Maioria), para a Penitenciária Federal de Porto Velho (RO), em 2011. Os detentos retornaram dois anos depois com a missão de implantar a maior facção do país no estado. O crime em Roraima nunca mais foi o mesmo.
O PCM limitava-se a atuar dentro do sistema prisional e lucrava com os veteranos extorquindo os detentos recém-chegados. O PCC tinha outra filosofia. Grampos telefônicos revelaram que Ozélio de Oliveira, o “condutor” que estava no Paraná, fazia ligações para presos da PAMC (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo), em Boa Vista, auxiliando na organização do crime.
Roraima foi dividida em 18 regionais, cada integrante do PCC passou a ter tarefas específicas e foi criado um plano de metas individuais. Mas o ponto de virada na mentalidade da massa carcerária foi o massacre na PAMC, em 6 de janeiro de 2017.
A carnificina só foi possível por causa de um erro de cálculo. Os integrantes do CV (Comando Vermelho) que cumpriam pena em Boa Vista não se preocuparam com a barbárie ocorrida cinco dias antes em Manaus e que terminou com 56 integrantes do PCC assassinados por membros da Família do Norte, junto com o CV. Quando agentes da PAMC preparavam a transferência de filiados à facção carioca, alguns se esconderam para não mudar de cadeia, confiando que o histórico de boa relação evitaria uma vingança.
Ocorre que a velha guarda do PCC estava fora de Roraima, em nova passagem pelo sistema penitenciário federal. Quando a ordem de matar filiados ao CV chegou, a geração mais nova não perdoou. O saldo foram pilhas de corpos decapitados nos corredores da PAMC. O destino das facções estava selado. O CV nunca conseguiu se reerguer, e o PCC cresceu no controle de bairros, biqueiras e filiados. Hoje, a facção paulista tem 1,5 mil integrantes em Roraima, de acordo com estimativas da inteligência.
Mão de obra estrangeira
O PCC se aproveitou da crise imigratória na Venezuela para crescer. Com o país enviando em média 544 pessoas por dia ao Brasil, a importação de criminosos foi facilitada.
Em 2017, ocorreu o batismo de 55 venezuelanos na facção. No ano seguinte, 181 estrangeiros foram “chapados”. Um agente de inteligência contou ao UOL que os “venecas” fazem “clínica geral” – furto, roubo e tráfico.
Com o PCC se tornando hegemônico e ampliando suas atividades para o garimpo, a necessidade por mão de obra criminosa aumentou. Os venezuelanos foram recrutados para o microtráfico e as funções de mula, indivíduo que transporta drogas e armas para a facção. Com o tempo, ocuparam cargos maiores.
Diante do crescimento notório do PCC e depois de tantas fugas em massa e do massacre na PAMC, as autoridades reagiram. Foi instituída a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado de Roraima, que contava com agentes das polícias Federal, Civil e Militar e homens do sistema prisional. Partiu desse grupo a Operação Triumphus, de julho de 2020, que prendeu 19 venezuelanos. As investigações revelaram que eles comandavam pontos de venda de drogas, depósitos de armas e dois tribunais do crime.
Apesar do aumento de poder, nenhuma organização criminosa venezuelana bate de frente com o PCC, segundo agentes de inteligência de Roraima. Mas elas trouxeram suas rixas para o Brasil. Sindicato, Trem de Aragua e Trem de Guayana resolvem suas diferenças com muita brutalidade.
O método de execução inclui esquartejamento, seguido de decapitação e abertura da barriga para depositar a cabeça dentro. Na sequência, os corpos são colocados em sacos plásticos e abandonados perto de córregos e no anel viário de Boa Vista. De acordo com o jornal Folha de Boa Vista, 40 corpos foram decapitados entre janeiro de 2018 e outubro de 2019. As datas coincidem com a migração de integrantes do PCC para a área de garimpo.
Levantamento de inteligência a qual o UOL teve acesso indica 21 esquartejamentos de venezuelanos, entre março e setembro de 2021. Com violência, as facções estrangeiras vão abrindo caminho.
O convívio com o PCC é amistoso. Pelo menos por enquanto.
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