A restrição à entrada de estrangeiros oriundos da Venezuela por via terrestre no Brasil é “injustificada” e “discriminatória”. A avaliação é de um parecer elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), da USP. Desde a semana passada, o governo proibiu a entrada de estrangeiros no Brasil por via terrestre por conta da Covid-19, mas liberou a circulação daqueles que vivem em cidades-gêmeas, localizadas nas fronteiras. O problema, segundo o parecer, é que essa liberação vale para estrangeiros de todos os países, exceto para os provenientes da Venezuela.
Desde o início da pandemia no Brasil, o governo federal publicou diversas portarias interministeriais com o objetivo de controlar o fluxo de estrangeiros no Brasil. No auge, o governo chegou a proibir a entrada de estrangeiros tanto por via terrestre quanto por via aérea. Com o tempo, as restrições foram sendo flexibilizadas, especialmente para o ingresso no país pela via aérea, mas a restrição à entrada de estrangeiros oriundos da Venezuela continuou em vigor.
Na semana passada, o governo reeditou uma portaria mantendo a proibição para a entrada de estrangeiros de qualquer nacionalidade por via terrestre. A medida garantiu o tráfego daqueles estrangeiros que vivem em cidades-gêmeas como Ponta Porã em Mato Grosso do Sul ou Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, mas manteve a proibição para o tráfego de estrangeiros que vivem nas cidades-gêmeas de Santa Elena do Uairén, na Venezuela, e Pacaraima, em Roraima. A região é a principal porta de entrada para venezuelanos que buscam refúgio no Brasil.
Segundo o parecer do Cepedisa, essa restrição imposta aos cidadãos da Venezuela não tem fundamento científico. O documento diz que a restrição à entrada de estrangeiros é uma medida adequada no início de um processo pandêmico, mas como o Brasil tem a transmissão sustentada há vários meses, ela não teria mais resultado.
“A partir do momento que temos a transmissão sustentada e, especialmente, quando a mesma se dissemina para todas as regiões de um país, atingindo inclusive, cidades de médio e pequeno porte, as medidas sanitárias de fechamento de portos, aeroportos e de fronteiras terrestres perdem boa parte de sua eficácia e deixam de ser a melhor solução para o controle da epidemia”, diz o documento.
O parecer diz ainda que, na medida em que o Brasil se transformou em um dos países com os maiores índices de transmissão da doença, a proibição da entrada de venezuelanos é ainda menos justificada, uma vez que não haveria o risco de eles espalharem o vírus no Brasil. O parecer diz que, com a portaria, o governo pratica “discriminação” contra estrangeiros provenientes da Venezuela.
“Essa discriminação dos estrangeiros provenientes da Venezuela não encontra guarida em razões de saúde pública, já que os dados epidemiológicos dos países fronteiriços terrestres da América do Sul com o Brasil demonstram que demonstram que outros países da América do Sul, incluindo o Brasil, apresentam números de casos mais elevados”, afirma o documento.
Desde o início da pandemia, o governo justificou as medidas restritivas em relação à Venezuela com base em uma nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que alertava sobre a falta de confiabilidade dos dados de saúde pública do país vizinho, que enfrenta uma crise política e econômica.
O parecer do Cepedisa diz, no entanto, que mesmo a crise enfrentada pelo país possa levar à subnotificação nos casos de Covid-19, é “pouco provável” que os índices da doença na Venezuela sejam maiores que o de países como Brasil, Peru e Colômbia.
“Considerando que o Brasil situa-se na fase de transmissão sustentada em todo o seu território, incluindo áreas metropolitanas, cidades de médio e pequeno porte e entre os países mais atingidos da América do Sul, podemos afirmar que medidas mais restritivas para a entrada no país de pessoa originárias da Venezuela ou de outros países limítrofes não se justificam”, afirmam os especialistas que assinaram o parecer.
O parecer foi solicitado pela organização não-governamental Conectas, que atua na defesa dos direitos humanos de grupos vulneráveis como imigrantes. O documento será encaminhado a órgãos do governo federal como Ministério da Saúde, Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e também deverá ser anexado em processos que tramitam na Justiça Federal que questionam a legalidade das portarias emitidas pelo governo federal.
Procurado, o Ministério da Justiça disse que as medidas de restrição a estrangeiros oriundos da Venezuela foram definidas com base em critérios estabelecidos pela Anvisa. “Apesar de assinada em conjunto, a Anvisa utiliza critérios técnicos para definir ações perante a situação emergencial imposta pela pandemia da Codiv-19”.
O jornal O Globo também pediu esclarecimentos à Casa Civil e ao Ministério da Saúde, mas não obteve posicionamento até o fechamento desta reportagem.