Três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votaram, até as 13h desta terça-feira, 16, no plenário virtual, pela inconstitucionalidade do Marco Temporal previsto na Lei 14.701, aprovada em 2023 pelo Congresso Nacional. O dispositivo estabelece a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, como referência para que povos indígenas solicitem a demarcação de seus territórios. O primeiro a votar foi o relator, ministro Gilmar Mendes, seguido parcialmente pelos colegas Flávio Dino e Cristiano Zanin.
Inicialmente, o julgamento estava previsto para ocorrer integralmente no plenário virtual. No entanto, após solicitação de movimentos indígenas, o relator pediu a realização de uma sessão presencial, em 10 de dezembro, restrita à leitura do relatório e às sustentações orais de advogados e terceiros interessados. No dia seguinte, Gilmar Mendes solicitou que o processo retornasse ao ambiente virtual, que teve início nesta segunda-feira, 15, e deve ser concluído às 23h59 de quinta-feira, 18. Com os três votos já proferidos, ainda restam nove ministros a se manifestar.
Em seu voto, Gilmar Mendes julgou procedentes três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), reconhecendo a inconstitucionalidade do Marco Temporal por contrariar entendimento já firmado pelo STF, em setembro de 2023. O relator, contudo, validou a maior parte dos dispositivos da lei e declarou a inconstitucionalidade de sete artigos. Também destacou decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que afastam a adoção de qualquer marco temporal para o reconhecimento da tradicionalidade da posse indígena.
O ministro lembrou que, diante da complexidade das ações, da reiteração de um tema já apreciado pelo Supremo e do agravamento da violência no campo envolvendo indígenas e não indígenas, instituiu uma comissão especial de autocomposição. O grupo buscou formular propostas consensuais para a solução dos conflitos, resultando na elaboração de uma minuta de projeto de lei destinada a corrigir os pontos considerados problemáticos da Lei do Marco Temporal, legislação apelidada de “Lei do Genocídio” pelo movimento indígena.
“O enfoque debatido na autocomposição da Comissão Especial nestes autos passou pelo motivo pelo qual o Parlamento insiste na existência do Marco Temporal indígena em 5 de outubro de 1988, identificando-se a necessidade de promover segurança jurídica para todos os envolvidos, evitando incertezas quanto a investimentos e dificuldades de acesso a crédito no meio rural. Todavia, a imposição de um Marco Temporal pretérito e distante no tempo, de forma retroativa, para povos que não possuem cultura de resguardo de documentação formal, não guarda proporcionalidade com o fim almejado”, afirmou o magistrado.]
O Marco Temporal está previsto em três dispositivos da Lei 14.701/2023 — artigos 4º, 31º e 32º —, dos quais Gilmar Mendes votou por retirar as expressões “na data da promulgação da Constituição Federal” e “em 5 de outubro de 1988”, consideradas inconstitucionais. O artigo 4º concentrou o maior número de declarações de inconstitucionalidade, tanto no caput quanto em seus parágrafos. Também foi invalidado o artigo 13, que proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Para o relator, essa vedação conflita com o artigo 231 da Constituição e com o entendimento firmado pelo STF no Tema 1031, uma vez que a primeira demarcação pode ter validado títulos de propriedade e de posse que ficaram de fora da delimitação inicial.
Além disso, foram considerados inconstitucionais, de forma conjunta, os artigos 20, 23, 26 e 27 da lei. Esses dispositivos tratam de temas correlatos, como a autorização para instalação de bases militares, postos e infraestrutura viária, energética e de telecomunicações, atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal, além de interferirem no usufruto exclusivo dos territórios ao permitir o ingresso de pessoas estranhas às comunidades. Segundo Mendes, tais normas violam o direito de consulta prévia dos povos originários, entre outros direitos.
“(…) A única possibilidade interpretativa dos arts. 26 e 27 da Lei 14.701/2023 compatível com a Constituição e com os tratados internacionais é aquela que condiciona os resultados dessas atividades à obtenção de benefícios para toda a comunidade indígena”, afirmou o relator.
Zanin e Dino consideraram inconstitucionais também os §§ 1º e 2º do artigo 23 da Lei 14.701/2023, por entenderem que o texto inverte a ordem constitucional ao permitir que o órgão gestor ambiental da unidade de conservação seja responsável por dirimir questões relativas ao usufruto exclusivo dos povos indígenas em suas próprias terras.
“A relação de subordinação deve ser oposta. O órgão gestor apresenta as suas pretensões e a comunidade indígena estipula, de acordo com os seus interesses, as regras para normatizar a presença de visitantes e pesquisadores em seu território”, pontuou Dino, acompanhado por Zanin.
Omissão de décadas
Além do exame do mérito das ações, Gilmar Mendes reconheceu a omissão inconstitucional da União no cumprimento do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determinava a demarcação de todas as terras indígenas no prazo de cinco anos após a promulgação da Constituição, obrigação que permanece descumprida.
Segundo o relator, não é juridicamente aceitável manter, após mais de três décadas, um quadro de mora administrativa permanente, que produz insegurança jurídica, intensifica conflitos no campo e gera violações de direitos fundamentais de indígenas e não indígenas.
Ao concluir seu voto, Gilmar Mendes defendeu que o STF declare a omissão inconstitucional da União quanto ao artigo 67 do ADCT e imponha medidas estruturais, com prazos razoáveis e peremptórios, para a conclusão dos procedimentos demarcatórios, como forma de restaurar a segurança jurídica, reduzir conflitos no campo e assegurar a efetividade dos artigos 231 e 5º da Constituição.
No total, foram determinadas seis medidas para ajudar a combater os conflitos no campo envolvendo terras indígenas. Entre elas, está a publicação, pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), no prazo de 60 dias, de uma lista com todos os pedidos e processos de demarcação instaurados, inclusive reivindicações territoriais indígenas ainda não autuadas, respeitando-se a ordem de antiguidade.
Artigos considerados constitucionais
Por outro lado, o relator manteve a constitucionalidade de dez artigos questionados, que tratam da participação de estados, municípios e dos próprios indígenas em todas as etapas administrativas do processo de demarcação conduzido pela Funai.
Também foi considerada constitucional a previsão do artigo 10, que estende a antropólogos, peritos e outros profissionais especializados nomeados pelo poder público as regras do artigo 148 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre hipóteses de impedimento e suspeição. Os ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin divergiram e votaram pela inconstitucionalidade desse dispositivo, por não verem “razão para importar para o âmbito administrativo restrições mais amplas previstas para a esfera judicial”.
Embora não tenha declarado inconstitucionais os artigos 14 e 15, Gilmar Mendes fez ressalvas aos dispositivos que determinam a adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos à nova lei e que preveem a anulação de demarcações que não atendam aos seus preceitos.
“Portanto, é caso de se proceder à interpretação conforme do artigo 14 da Lei 14.701/2023, estabelecendo que os processos administrativos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos devem ser adequados à nova legislação, ressalvados os atos administrativos praticados antes de sua vigência”, afirmou Mendes.
Também foram considerados constitucionais por Gilmar Mendes os dispositivos do artigo 18, que reconhecem como propriedade privada as áreas adquiridas pelos indígenas que não sejam de domínio da União.
O voto do ministro Flávio Dino acompanhou quase integralmente o relator, com ressalvas pontuais. Ao negar a aplicação do Código Civil aos técnicos que auxiliam nos processos administrativos de demarcação, como antropólogos, Dino destacou a necessidade de garantir a celeridade administrativa nesses procedimentos (artigo 10). Ele também reafirmou a centralidade do usufruto indígena sobre suas terras (artigo 23) e rejeitou as previsões do artigo 26, § 2º, para evitar a exploração econômica indireta por não indígenas, conforme aprovado pelo Congresso Nacional na Lei do Marco Temporal.
“Vislumbro, no caso, desproporcional flexibilização da regra que impede o exercício de atividades econômicas por não indígenas nas áreas protegidas. (…) Nada obstante a clareza do dispositivo constitucional, não têm sido poucas as tentativas de mascarar a indevida exploração econômica por não indígenas em territórios indígenas”, frisou Flávio Dino.








