A comunidade indígena Morcego, situada a 60 quilômetros de Boa Vista (RR), enfrenta transformações profundas desde 2018, quando plantações de soja começaram a ocupar a paisagem ao redor de seu território.
Segundo reportagem da Repórter Brasil, baseada em um estudo inédito do Instituto Serrapilheira, 26 das 33 terras indígenas de Roraima — o equivalente a 4 em cada 5 — estão cercadas por lavouras de soja. Dessas, 24 foram demarcadas em formato de “ilhas”, ou seja, fragmentadas e isoladas, o que amplia sua vulnerabilidade diante do avanço agrícola.
Avanço acelerado e incentivado
De acordo com o IBGE, a área destinada à soja em Roraima aumentou 526% entre 2017 e 2024, saltando de 18.725 para 117.215 hectares. No mesmo período, a produção do grão multiplicou-se por nove, chegando a mais de 416 mil toneladas. A soja tornou-se o principal produto de exportação do estado, com destaque para destinos como China, Guiana, Venezuela e países da União Europeia.
Esse crescimento está vinculado a uma combinação de demanda internacional e políticas públicas estaduais que facilitaram a ocupação de terras por grandes produtores. A gestão do atual governador, Antonio Denarium (PP), aprovou leis que ampliaram o limite de propriedade e reduziram a reserva legal de vegetação nativa de 80% para 50%.
Impactos nas comunidades indígenas
Na comunidade Morcego, onde vivem cerca de 285 pessoas dos povos Macuxi e Wapichana, os efeitos da proximidade com as lavouras são sentidos diariamente. Pulverizações aéreas de agrotóxicos já provocaram reações alérgicas em crianças e idosos. Em 2021, uma denúncia ao Ibama resultou em multa de R$ 103 mil aos responsáveis, além da proibição do uso de aviões para aplicação de veneno nas imediações.
Mesmo com as restrições, novos despejos foram registrados em 2022. O Ministério Público Federal moveu ação civil pública, exigindo indenização de R$ 1 milhão à comunidade. Em 2023, decisão judicial suspendeu o uso de aeronaves, mas moradores denunciam que os agrotóxicos continuam sendo aplicados com máquinas terrestres.
Biodiversidade sob pressão
O estudo citado pela Repórter Brasil também revelou que quanto maiores e mais isoladas são as terras indígenas, maior é sua riqueza ambiental. Foram identificadas 1.930 espécies de fauna e flora em 20 TIs analisadas. No entanto, a presença de soja ao redor das áreas protegidas se mostrou fator de impacto negativo, principalmente sobre aves e anfíbios.
Efeitos na cultura e na alimentação
Além dos problemas de saúde, a comunidade relata dificuldades para manter tradições agrícolas e de coleta. Espécies como o caimbé e o mirixi, antes comuns na região, estão desaparecendo. “A gente está comprando farinha porque aqui não estamos mais produzindo”, lamenta Nayandre Nagelo da Silva, moradora da comunidade.
A proximidade das lavouras também altera o microclima local e espanta os animais usados na caça, atividade essencial para a sobrevivência e identidade cultural dos povos indígenas da região.
O pesquisador Bruno Sarkis, da Universidade Federal do Amazonas, alerta que o avanço da soja é parte de um processo mais amplo de apropriação territorial por grandes produtores vindos de estados como Mato Grosso e Paraná. “Do ponto de vista socioeconômico, o PIB cresce. Mas, socialmente, a renda se concentra nas mãos de poucos”, avalia.
Para ele, o Zoneamento Ecológico-Econômico aprovado em 2022 contribuiu ainda mais para esse cenário, ao liberar 1,6 milhão de hectares de terras privadas para desmatamento.
Sem resposta oficial
Procurado pela equipe da Repórter Brasil, o governo de Roraima não respondeu até o fechamento da matéria.








