Dois conselheiros aposentados do TCE-RR (Tribunal de Contas do Estado de Roraima), condenados por desvio de dinheiro público, receberam R$ 1,1 milhão da corte em outubro passado. O bônus é relativo à venda de folgas de até dez anos atrás. A reportagem é do portal UOL.
O pagamento só foi possível após uma mudança nas regras internas da tribunal, feita pela cúpula do TCE. Em agosto, quando ambos não integravam a corte, os atuais conselheiros liberaram o ressarcimento de folgas retroativo a 2015 —o que beneficiou os dois aposentados.
O TCE-RR pagou R$ 721 mil a Marcus Rafael de Hollanda Farias —fora do tribunal desde dezembro de 2018—, e R$ 381 mil a Henrique Manoel Fernandes Machado —afastado em dezembro de 2016. Os dois foram condenados pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) no chamado “escândalo dos gafanhotos”.
A investigação apontou que, entre 1998 e 2002, o então governador de Roraima, Neudo Campos (ex-PP, hoje sem partido), criou um esquema de compra de apoio político. Deputados e conselheiros do TCE indicavam funcionários “fantasmas” para órgãos estaduais e se apropriavam dos salários deles. Dentre os beneficiados, estavam Marcus Farias, 76, e Henrique Machado, 74.
Segundo denúncia do Ministério Público Federal, o governo empregou indevidamente milhares de “gafanhotos”, como ficaram conhecidos os falsos servidores. A acusação apontou que somente em 2002 foram desviados R$ 70 milhões (R$ 204 milhões em valores atuais).
O STJ condenou Farias e Machado a pouco mais de 11 anos de cadeia por peculato (desvio de recurso público) em 2018. A sentença registrou que ambos arregimentaram “pessoas humildes” para inserir em folhas de pagamento de órgãos do governo e apontou culpabilidade em “altíssimo grau”.
“Por atribuição do cargo, [o então conselheiro] era incumbido de zelar pela probidade e moralidade do Poder Executivo estadual, mas, mesmo assim, continuou a se envolver nas referidas práticas criminosas”, destacou o ministro do STJ Mauro Campbell, relator do caso, nas duas sentenças.
O advogado Leonildo da Fonseca Farias, que defende Marcus Farias, afirmou ao UOL que o conselheiro requereu o bônus com base nas regras do Tribunal de Contas. O pagamento se refere ao período em que Farias acumulou jurisdição e acervo processual.
Procurados, Henrique Machado e o TCE-RR não retornaram à reportagem.
Prisão e aposentadoria de R$ 41,5 mil
Marcus Farias cumpriu dois anos da pena em prisão domiciliar, por ter mais de 70 anos, diagnóstico de depressão e um filho com síndrome de Down, sendo viúvo. Em setembro de 2021, passou para o regime semiaberto. Atualmente, está em liberdade condicional.
O ministro Mauro Campbell determinou que Henrique Machado passasse a cumprir pena em setembro de 2019. O então conselheiro conseguiu um habeas corpus perante o STF (Supremo Tribunal Federal), onde ainda discute o processo, e não foi preso.
Machado foi deputado estadual e assumiu o cargo na cúpula do TCE-RR em março de 1999. Por decisão do STF, foi afastado em 2016, quando era presidente da corte e respondia à ação no STJ. Negou-se a cumprir a ordem, foi alertado de que a Polícia Federal poderia ser acionada e, então, se afastou da corte.
O conselheiro pediu aposentadoria do TCE-RR em março passado, dias antes de ser condenado em um segundo processo. O STJ aplicou uma pena de cinco anos e quatro meses de prisão em semiaberto, novamente por desvio de recursos públicos.
Segundo a ação, Machado atuou de forma indevida no tribunal para receber auxílio-transporte retroativo ao período em que estava afastado. A sentença ordenou que ele devolva R$ 297 mil aos cofres públicos. Atualmente, Farias e Machado recebem uma aposentadoria de R$ 41,5 mil mensais, cada um.
Por que eles receberam bônus?
Marcus Farias e Henrique Machado se beneficiaram de um penduricalho criado pelo tribunal de Roraima em dezembro de 2022. Desde então, os conselheiros têm direito a uma “licença compensatória” de um dia de descanso a cada três trabalhados. Quem não tira os dias de folga pode vendê-los.
O bônus é pago a quem acumula processos e cargos internos. Existem, na corte, sete conselheiros e sete funções disponíveis. Cada integrante da cúpula ocupa uma das posições que dá direito ao bônus.
Relatório da organização Transparência Brasil mostra que uma gratificação criada em 2015 para magistrados se transformou no penduricalho que dá direito à venda de folgas. Naquele ano, juízes federais que atuavam em mais de um local ou tinham muitos processos passaram a receber um bônus atrelado ao salário e sujeito ao teto constitucional.
Efeito cascata
Sob o argumento de equiparação com o Judiciário, o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) liberou o pagamento de um terço do salário para a categoria em maio de 2022. Deixou de citar, contudo, que o benefício deveria respeitar o limite previsto pela Constituição.
Em janeiro de 2023, o CNMP adaptou o bônus, concedendo um dia de folga a cada três trabalhados. Permitiu também a venda do descanso e previu um caráter de indenização —e não de remuneração—, livrando o penduricalho do teto.
Em seguida, houve um efeito cascata. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o Conselho da Justiça Federal, o STJ e tribunais de contas passaram a adotar o mesmo entendimento. Recentemente cortes têm liberado a venda de folgas retroativas a 2015.
O Tribunal de Contas de Roraima decidiu, em agosto passado, que pagaria a licença para o período de 13 de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2021. A corte concedeu:
R$ 721.349,27 (janeiro de 2015 a dezembro de 2018) a Marcus Hollanda
R$ 381.162,50 (janeiro de 2015 a dezembro de 2016) a Henrique Machado
Seis dos sete conselheiros atuais receberam, em setembro, R$ 6 milhões por venda de folgas retroativas a 2015.
‘É imoral’, diz Transparência Brasil
A diretora da Transparência Brasil Marina Atoji critica os pagamentos aos dois conselheiros. “Continuar recebendo esses recursos, ainda mais neste volume, é completamente imoral. É uma violação ao princípio da moralidade da administração pública”, afirmou ao UOL.
Justamente em um órgão que é responsável pela fiscalização do recurso público [o TCE], é uma contradição e uma completa imoralidade.
Na avaliação de Atoji, a criação de pagamentos retroativos por tribunais é um “abuso do poder de regulamentar a si próprios”. “É uma distorção.”.