O ano de 2024 foi decisivo para os povos originários. A demarcação de terras indígenas esteve no centro das discussões nos três Poderes. De um lado, comunidades argumentaram que o marco temporal ameaçava a sobrevivência de etnias e florestas. De outro, entidades ligadas ao setor agropecuário defendiam a aprovação da tese, pois assim, teriam uma regra definida para resolver disputas na Justiça por áreas tidas como próximas ou ocupadas por indígenas.
A demarcação de terras é uma tese jurídica segundo a qual os povos originários têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. A medida tem como objetivo garantir o acesso dos povos originários aos seus direitos e preservar suas culturas, tradições, línguas e modos de vida.
O tema afeta quase 1 milhão de integrantes de comunidades indígenas no país. A tese prevê que só podem ser demarcadas terras que já estavam sendo ocupadas por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Esse entendimento seria uma interpretação literal do artigo 231 que diz:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
O STF decidiu, em setembro de 2023, que a data não pode ser usada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas. Em retaliação, o Congresso Nacional editou a Lei 14.701/2023 e restabeleceu o marco temporal. Desde então, ações de entidades ligadas aos povos indígenas foram protocoladas na Corte para que seja derrubada a legislação.
Em 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou o compromisso do governo federal com os direitos dos povos originários — fazendo um contraponto aos posicionamentos da gestão de Jair Bolsonaro. Apesar disso, os conflitos, as violências e as disputas entre povos originários e garimpeiros continuaram, mantendo vivas as cicatrizes históricas de décadas de lutas e perseguições.
Argumentos
Desde que o marco temporal começou a ser debatido no STF, em 2021, as alas indígenas e de agricultura travaram um embate público. A questão é polêmica, pois envolve o direito à moradia de comunidades que historicamente sofreram com violências, expulsões de áreas ocupadas, genocídios e deterioração cultural desde a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, quando as terras já estavam ocupadas pelos povos tradicionais.
As instituições do agro têm interesse no tema, pois pode representar maior parcela de terra para ser usada na criação de lavouras, pastos e na produção de alimentos, tendo em vista que áreas de proteção indígena tem normas legais mais rígidas.
O analista jurídico Ivon Garcez explica que a principal diferença entre a Constituição e o marco temporal são os critérios considerados para a demarcação das terras. “Enquanto a lei leva em conta a ocupação tradicional e a preservação cultural de forma ampla e subjetiva, o marco concentra-se na posse física na data de 5 de outubro de 1988 e adota um critério objetivo que não está previsto diretamente no texto constitucional”, aponta.
Atualmente, o STF tem uma posição consolidada pela inconstitucionalidade do marco temporal. No entanto, diante do Legislativo, que defende a manutenção da tese, a Corte criou uma Comissão Especial de Conciliação para mediar o conflito, visando que as partes envolvidas cheguem a um entendimento comum sem a imposição de uma decisão judicial definitiva.
Para o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Luis Ventura, a vigência da Lei 14.701/2023, que estabeleceu o marco temporal, é o maior retrocesso legislativo desde a Constituição de 1988.
“Essa lei desconstitui direitos fundamentais, modificando o procedimento de demarcação de terras indígenas com o objetivo de permitir a exploração desses territórios”, explica Ventura.
O principal desafio para o ano que vem é garantir a proteção dos territórios indígenas. Na avaliação de Luis Ventura, a demarcação caminha a passos lentos. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável pelas primeiras etapas da demarcação, enfrenta escassez de recursos e desafios administrativos.
O Ministério da Justiça tem avançado de forma gradual, mas o número de homologações de terras indígenas permanece aquém do necessário. “Ao longo de 2025, será crucial que o STF se mantenha firme na defesa da Constituição e declare a inconstitucionalidade do marco temporal”, conclui.
Ao longo dos últimos anos, a Funai passou por um processo de desestruturação dos serviços. “O processo de sucateamento, com deficit de servidores e baixo investimento na infraestrutura, além da falta de vontade política para avançar nos processos de demarcação, resultou em uma paralisação de seis anos”, disse a Funai em nota ao Correio.
Este cenário mudou a partir do ano passado, quando os processos foram retomados. Desde então, 13 territórios indígenas foram homologados, oito terras tiveram os limites declarados. Atualmente, as áreas indígenas no Brasil abrangem cerca de 105 milhões de hectares, o que representa mais de 13% do território nacional.
Em 2024, o compromisso com os povos indígenas foi mantido, resultando na homologação de mais cinco terras: Aldeia Velha (BA), Cacique Fontoura (MT), Potiguara de Monte-Mor (PB), Morro dos Cavalos (SC) e Toldo Imbu (SC). Restam 261 áreas tradicionalmente ocupadas que aguardam o avanço de seus processos de demarcação.
PARA ENTENDER
Veja o imbróglio sobre o marco temporal entre os três Poderes
-
Segundo a tese do marco temporal, os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988;
-
Em setembro de 2023, o STF decidiu que a data não pode ser usada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas;
-
Em dezembro do ano passado, antes de a decisão do Supremo ser publicada, o Congresso Nacional editou a Lei 14.701/2023 e restabeleceu o marco temporal;
-
Desde então, foram apresentadas quatro ações questionando a validade da lei (ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86) e uma pedindo que a Corte declare sua constitucionalidade.