Trajando cocares, indígenas assistem audiência no STF (Foto: Gustavo Moreno/STF)

O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou, na semana passada, os trabalhos da Comissão Especial de Conciliação para discutir as ações que questionam ou apoiam a Lei do Marco Temporal (14.701/23), aprovada em 2023 pelo Congresso Nacional. Prevista para encerrar este mês, a vigência foi estendida para fevereiro de 2025, porque não se chegou a uma proposta que atenda aos objetivos estabelecidos.

Desde 24 de agosto, a Comissão realizou 14 audiências, com debates sobre a jurisprudência do Marco Temporal e sugestões de alterações na legislação em vigor que, ao final, serão apresentadas ao Poder Legislativo. As próximas reuniões serão realizadas nos dias 3, 10, 17 e 24 de fevereiro de 2025.

O artigo 4º da Lei 14.701/23 estabelece a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, como limite para se reclamar a demarcação das terras indígenas, obedecendo a determinados critérios.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os partidos PT e PDT ingressaram com três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) – 7582, 7583, 7586 – questionando a lei, porque o STF já se posicionou contra a tese do Marco Temporal. O partido Progressistas apresentou uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 87) pela validade da lei e outra Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86).

O relator das matérias no Supremo, ministro Gilmar Mendes, disse que decidiu criar uma comissão de conciliação para debater a questão e evitar o “vai-e-vem” de decisões judiciais e projetos legislativos, num processo conhecido na área jurídica como “blacklash” (um contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial).

A questão da demarcação das terras indígenas se arrasta desde 1988, porque a Constituição estabeleceu o prazo de cinco anos para se concluir o processo de regularização dos territórios, o que até hoje não ocorreu.

A ideia é se chegar a um consenso numa proposta que atenda aos interesses de indígenas e não-índígenas, pois a lei tem largo apoio da bancada do agronegócio no Congresso. Mas na segunda audiência, no dia 28 de agosto, a Apib se retirou da comissão, demonstrando insatisfação com a ideia do ministro Gilmar Mendes de criar essa mesa de debates num tema que, para eles, já é protegido na Constituição.

Os indígenas consideram, também, que esse é um ponto resolvido pelo Supremo, ano passado, que considerou inconstitucional a tese do marco temporal, cujo acórdão encontra-se em fase de execução.

A Apib também discorda da forma como os trabalhos serão conduzidos pela comissão que, ao final, pode decidir por maioria nos temas que forem definidos como importantes para seguir para o plenário do Supremo. Com a sua retirada, a organização indígena informou que só vai se pronunciar no âmbito do processo e aguardar a decisão dos 11 membros da Corte.

Para não deixar a mesa vazia de representantes diretos dos indígenas, o ministro Gilmar Mendes determinou que o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) indicasse cinco membros dos povos originários, representantes de cada região do Brasil, para compor a mesa. Desde então, são esses representantes que participam dos debates, que tem ainda a presença de servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A medida também foi criticada pela Apib.

STF vê avanços da comissão

Em nota publicada site oficial, o STF avalia que o trabalho encerra o ano “com avanços nos debates realizados ao longo do semestre e propostas de alterações legislativas que devem ser aprofundadas nos encontros de 2025”.

“O objetivo das audiências tem sido buscar uma solução consensual sobre medidas e propostas que garantam os direitos dos povos originários, respeitando sempre a sua pluralidade de valores e costumes, e da população não indígena, de forma a garantir uma coesão institucional em torno de pontos mínimos que assegurem proteção e segurança jurídica a todos”, ressalta a nota.

Além da jurisprudência do STF, os participantes da comissão também discutiram as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Marco Temporal, os direitos indígenas debatidos na Assembleia Constituintes de 1987 e na Constituição de 1988. A CIDH também rechaça a tese.

Foram escrutinados os três principais artigos da Lei 14.701/23, principalmente o Artigo 4º, que define critérios para o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e é onde está fixado o marco temporal.

Participação de indígenas e antropólogos

Nos dias 16 e 18 deste mês, os trabalhos envolveram audiências com antropólogos e 25 indígenas, cujas contribuições serão levadas para aprofundar os debates em 2025. Um dos pontos mais questionados nas reuniões, principalmente pelos defensores da tese do Marco Temporal, é sobre a forma como os laudos antropológicos, que orientam a identificação para demarcação das terras indígenas, são realizados.

Dentre as autoridades que participaram das audiências, que são coordenadas pelos juízes auxiliares do ministro Gilmar Mendes, estava o próprio relator, que também é decano do STF, o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, o advogado-geral da União, Jorge Messias, a ministra Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e o líder indígena Raoni Metuktire.
Mulheres indígenas protestam contra o Marco Temporal em Brasília (Antônio Cruz/Agência Brasil)

O juiz conciliador Diego Viegas sempre deixou claro, durante as reuniões, que o ministro Gilmar gostaria de partir dos parâmetros já decididos pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, no ano passado, que considerou inconstitucional a tese do Marco Temporal. Viegas argumentou, aos participantes da mesa, que era preciso avançar na proposta de mudança da legislação para inovar nas respostas a um tema tão controverso.

As discussões se deram também em definir uma forma de demarcar as terras indígenas de maneira mais célere, com mais transparência e direito ao contraditório, e garantindo dois direitos previstos na decisão do Supremo de 2023. Um é a possibilidade de indenização de terra nua, que consiste no imóvel rural que não tem nenhum investimento, não possui nenhum equipamento ou construções que permitam a atividade rural, como plantações, pecuária, entre outros.

O segundo diz respeito ao direito de retenção, “que assegura ao proprietário das terras ocupadas a possibilidade de retê-las até o pagamento de indenizações ou dos valores correspondentes às benfeitorias no espaço”, de acordo com o STF. Esse procedimento pode ocorrer apartado ao processo da demarcação.

Como também houve várias sugestões de alterações legislativas, que deverão ter seu debate aprofundado em 2025, ao final das audiências será elaborado um relatório final com todos os pontos de consenso e dissenso discutidos ao longo dos encontros.

“Caso a alteração legislativa seja aprovada na Comissão e referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o texto será enviado ao Congresso para análise de deputados e senadores”, informou o STF.

E quem indeniza os povos originários?

Como as discussões dominavam sempre o direito de indenização aos não indígenas que porventura tenham que deixar a terra para ser demarcada, os representantes dos povos originários também questionaram como fica a situação de seus povos ao receber um território despido de suas florestas e rios, praticamente sem condições de uso.

Na cosmovisão indígena, a relação com os territórios vai além do uso produtivo do espaço, mas abrange questão ancestral, da relação com os espíritos e de seu pertencimento ao meio ambiente. Os debates não avançaram no sentido de pensar também numa indenização. Foram convidados representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para apresentarem propostas que possam ajudar no desenvolvimento das comunidades indígenas em seus territórios demarcados.

O BNDES desenvolve programas voltados para o pagamento de serviços ambientais, como a concessão de florestas e contratos de créditos de carbono. A concessão de florestas consiste no instrumento de política pública, na qual o poder público delega ao setor privado, por meio de concorrência, a realização de atividades florestais e de exploração de produtos e serviços em áreas de floresta pública por até 40 anos.

Os povos indígenas decidirão se concordam e aceitam desenvolver esses tipos de serviços em seus territórios. Uma das propostas mais suscetíveis aos interesses dos indígenas seria os contratos de crédito de carbono, mas estes precisam passar sempre pela consulta livre e informada dos povos, para não ocorrer irregularidades e proibições ao usufruto dos produtos do território.

Segundo informou o STF, “os encaminhamentos feitos após o fim do ciclo de audiências serão levados aos 11 ministros do Supremo, que podem considerá-los também durante eventual julgamento de mérito das cinco ações”.

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