Para marcar os 20 anos de criação da Hutukara Associação Yanomami (HAY), a organização realizou entre 9 e 11 de novembro o Encontro dos Xamãs, na comunidade Yakeplaopi, região de Palimiu, no município de Alto Alegre, em Roraima. Uma das dez associações da Terra Indígena Yanomami (TIY), a Hutukara é considerada a mais representativa, com lideranças Yanomami e Ye’kwana.
O local escolhido para marcar a festa da associação foi em umas das regiões mais emblemáticas do território. Nos últimos anos a TIY foi fortemente atacada por garimpeiros. Palimiu é um dos pontos estratégicos dos invasores, sendo passagem de entrada e saída de forma fluvial de Boa Vista para o território, na calha do Rio Uraricoera. Em 2021, os Yanomami dessa região foram vítimas de vários dias de ataques a balas pelos invasores e até tiroteios entre garimpeiros e policiais.
Atualmente, Palimiu recebe uma forte estrutura montada nos últimos anos pelo Governo Federal, com a restruturação da Base da Funai, que recebe contingentes das Forças Armadas para operações de desintrusão do garimpo. Uma corda de aço perpassa de um lado a outro do rio para impedir a passagens de barcos dos garimpeiros. Mesmo com sucesso das operações nos últimos meses, ainda há indícios da presença de garimpeiros na região.
“Escolhemos esse local para o evento de 20 anos da Hutukara, primeiro porque aqui é a nossa casa e nunca vamos recuar e nem nos amedrontar com os invasores, eles que precisam sair imediatamente da nossa terra. Aqui também é um ponto de resistência a todos os ataques que a Terra Yanomami vem sofrendo nos últimos anos. Palimiu é um símbolo de luta! Somos fortes, com guerreiros e guerreiras e vamos continuar resistindo”, disse Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara.
Criada em 2004, a Hutukara é uma das mais atuantes organizações indígenas no Brasil, sendo a mais atuante dentro do território, exercendo um papel de articulação política e gerindo projetos voltados à proteção territorial, principalmente frente à invasão do garimpo ilegal – com diversas denúncias aos órgãos públicos, principalmente relatórios – manejo etnoambiental, saúde, formação, pesquisa e outras iniciativas com parcerias nacionais e internacionais.
Nascida a partir da necessidade e luta do xamã e liderança política, Davi Kopenawa, a criação da HAY aconteceu em uma assembleia indígena, na comunidade de Watorikɨ, região do Demini, no Amazonas. Atualmente, a assembleia é convocada a cada quatro anos e desde sua fundação, Davi Kopenawa vem sendo reeleito como presidente da associação, e seu filho Dário Vitório Kopenawa, foi escolhido para ocupar o cargo de vice-presidente, em 2022.
“Durante a nossa festa, vamos realizar o Encontro dos Xamãs. Quase dez anos que não fazemos esse encontro e isso marca também a nossa retomada de fortalecer a nossa medicina tradicional dos xapiri, nossos médicos da floresta. No passado já fizemos esse encontro nas regiões da Missão Catrimami, Demini, Ajarani e Novo Demini. Quando não tinham os médicos não indígenas, os xamãs que nos curavam. Isso é um conhecimento sagrado e vamos fazer essa demonstração com mais de 20 xamãs de várias regiões, sobretudo para os jovens, que devem manter a nossa tradição”, disse Dário.
Para o povo Yanomami, os xamãs são homens yanomami que passam por um processo longo de formação com os mais velhos, ficam submersos da floresta, usando somente o pó vegetal “yakoana”, que é alucinógeno, extraído de uma árvore, a partir daí fazem conexão com os “xapiri’, que são guardiões invisíveis das florestas, espíritos nos quais os ancestrais animais dos povos Yanomami se transformaram.
Dário explica que, quando o planeta fica doente, com as mudanças climáticas, são os xamãs que curam a terra. “Quando acontecem os desastres ambientais como enchentes e grandes secas, os xamãs fazem o tratamento para curar o planeta, para equilibrar a Terra-Floresta. Quando acontecem as epidemias e pandemias, eles trabalham para enfraquecer a xawara [doenças]. Por isso é importante fazermos esse encontro, para recuperar o que fizemos anos atrás, não podemos esquecer o nosso xapiri porque é a nossa cosmovisão, que Omama [Deus] nos deixou”, disse o vice-presidente.
De acordo com o xamã Davi Kopenawa, o nome “Hutukara” foi escolhido para a associação pelos xapiri. Em diferentes contextos, a palavra Hutukara adquire sentidos diversos com base na cosmologia Yanomami. Segundo Davi, Hutukara é o céu que desabou nos primeiros tempos, constituindo o plano em que nos encontramos hoje, o da urihi, a terra-floresta – povoado por seres vivos visíveis e invisíveis. É, portanto, o nome xamânico da terra atual, associado ao que os não indígenas chamam de universo, mundo ou planeta Terra. Nome propício, pois o papel da associação é defender a Terra-Floresta e seus povos.
Com mais de nove milhões de hectares, a Terra Indígena Yanomami é a maior do Brasil, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, com cerca de 32 mil habitantes, entre os povos Yanomami e Yekwana, divididos em mais de 380 comunidades. O acesso às comunidades é de 98% via aérea e 2% terrestre. Na terra Yanomami, também existe um grupo de indígenas considerados isolados, os Moxihatëtëma.
A criação de associações Yanomami, se deu pela Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), fundada em 1998, e se insere no contexto do movimento indígena, a partir da Constituição Federal de 1988. Entre as referências importantes para o processo de criação da HAY, Davi Kopenawa se destaca com Ailton Krenak e Álvaro Tukano, que na década de 1980 coordenavam a União das Nações Indígenas (UNI), assim como lideranças do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e organizações indigenistas.
A fotógrafa Cláudia Andujar, o antropólogo Bruce Albert e o missionário Carlo Zacquini estiveram à frente da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), posteriormente denominada Comissão Pró-Yanomami, fundada em 1978, que tinha como objetivo o reconhecimento, demarcação e homologação da TIY, o que aconteceu em 1992. Com o encerramento da CCPY, parte de suas atividades foi assumida pelo Instituto Socioambiental (ISA), importante parceiro da HAY.
A partir da criação da Hutukara, surgiram outras associações da TIY que comportam os estados de Roraima e Amazonas – Associação Wanasseduume Ye´kwana (Sedumme), Associação Kurikama Yanomami (Kurikama), Associação das Mulheres Yanomami (Kumirayoma), Texoli Associação Ninam do estado de Roraima (Taner), Ypasali Associação Sanöma, Associaçao Xoromawë Indígena do Médio Rio Negro, Associação Parawami Yanomami e Urihi Associação Yanomami (Urihi).
Devido a extensão territorial e atualmente com 10 associações, a Hutukara é responsável de reunir essas organizações, que enfrentam desafios específicos, a partir da realização do Fórum de Lideranças, que é a maior instância política da TIY, com debates e decisões, reconhecido formalmente desde 2015.
Além disso, a HAY organiza assembleias gerais ordinárias e extraordinárias, encontros regionais com representantes de órgãos do Estado e de entidades parceiras, para discutir problemas e demandas da população. São também organizadas oficinas para tratar questões específicas, como a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da TIY e do Protocolo de Consulta.
A HAY se articula com outras forças do movimento indígena e com organizações indígenas como Conselho Indígena de Roraima (CIR), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Rede de Cooperação Alternativa (RCA) para objetivos políticos, possibilitando a participação de Yanomami em manifestações e encontros com representantes de órgãos públicos, em Boa Vista, Brasília e outros países.