Mais de 12,3 mil venezuelanos entraram no Brasil pela fronteira em Pacaraima (RR) só em agosto, primeiro mês desde o anúncio, em 29 de julho, da reeleição, acusada de fraudes, de Nicolás Maduro.
Apesar do fluxo expressivo, o mapeamento oficial, até agora, não indica o recrudescimento da imigração como produto do golpe do líder venezuelano, mas deixa claro que a crise humanitária está longe do fim. Uma consequência está no choque diário dos dramas de estrangeiros e brasileiros em busca de serviços públicos na primeira cidade impactada pela sobrecarga.
O ritmo de chegadas em agosto supera em 34% o de julho, quando 9,1 mil venezuelanos deram entrada no Brasil por Pacaraima. Entretanto, agentes do governo brasileiro atribuem o crescimento à sazonalidade da imigração. A alta se daria menos pelo impacto direto do problema político no país vizinho e mais pela coincidência com o fim do calendário escolar na Venezuela.
De fato, há, tradicionalmente, um salto nas chegadas em agosto, na comparação com o mês imediatamente anterior, mas a fotografia ampliada dos registros permite mais leituras. O volume de entradas em agosto deste ano é menor que o do mesmo mês de 2023 (13,1 mil) e pouco maior que o de 2022 (11,9 mil).
Os dados, atualizados até o início de setembro, são da Polícia Federal e da agência das Nações Unidas (ONU) para Migrações.
Os recém-chegados após a reeleição do líder venezuelano se somam aos cerca de 700 mil que vieram ao Brasil por Pacaraima a partir do pico da crise imigratória em meados de 2017. Lançada em 2018, a Operação Acolhida oferece a eles documentos, abrigo, vacinas e 22 mil refeições por dia.
Também custeia a ida desses venezuelanos para 1.061 cidades, como Curitiba, São Paulo e Manaus. Em 2024, o custo previsto da operação é de R$ 305 milhões.
“A operação não foi criada para atender venezuelanos. Foi criada para atenuar o caos em Boa Vista e em Pacaraima”, destaca o general Helder de Freitas Braga, coordenador operacional da Acolhida e comandante da força-tarefa logística humanitária.
“Antes, tínhamos pessoas que chegavam desgastadas, tinham andado mais de mil quilômetros e seguiam também andando para Boa Vista. Hoje dificilmente vêm a pé, mas vemos muitos analfabetos, pessoas em condições muito ruins, mulheres com três ou quatro filhos.”
Até setembro, 140 mil venezuelanos foram interiorizados pela Operação Acolhida, sem contar uma maioria que não demanda a estrutura oferecida pelo governo brasileiro. É comum que estrangeiros já estabelecidos enviem orientações e dinheiro para que amigos e familiares sigam diretamente até eles tão logo consigam a documentação necessária para entrar e residir.
É o caso da família de Elieser Parucho, 22. Ele, a mulher e o filho, de 3 anos, tentam há uma semana superar a burocracia necessária para obter os documentos necessários para morar no Brasil. Dali, seguirão para Corumbá (MS).
As passagens foram enviadas pela sogra, que viajou ao Mato Grosso do Sul ainda em 2022. O dinheiro repassado por ela também permite o “conforto” de uma acomodação coletiva na cidade em vez do alojamento da Acolhida. A criança tem asma e os pais a mantém longe da multidão que se aglomera em filas desde as primeiras horas da manhã.
“Chegamos na sexta passada. Lá a vida estava dura. Há trabalho, mas o pagamento é muito pouquinho. Uns 130 ou 140 bolívares, mais ou menos US$ 3 por mês. Tenho um pouco de medo. Nunca entrei em avião”, contou. “Quero trabalhar. Gosto de trabalhar em frigorífico. Também sou ajudante de cozinha.”
Em Boa Vista, ruas tomadas e atritos com brasileiros
As calçadas de Pacaraima e de Boa Vista seguem apinhadas de imigrantes. Às vezes, as cerca de 10 mil vagas em abrigos estão ocupadas. Em outros casos, os estrangeiros não querem se submeter às regras e aos riscos da vida nos alojamentos provisórios. Essa nova realidade do cotidiano de Roraima impõe, na capital, uma percepção negativa – não raro, xenófoba – dos brasileiros.
Nas ruas e nos comércios, a reportagem colheu depoimentos de nacionais que acusam os venezuelanos jogados por Boa Vista de serem sem interesse ou vocação para o trabalho e, por isso, preferem o assistencialismo e os pequenos delitos.
A realidade, porém, é mais complexa. Entre os imigrantes, há pessoas em vulnerabilidade social, analfabetos no espanhol, sem trabalho e sem ter o de comer, observam oficiais da Acolhida. Há crianças, idosos, enfermos, recém-operados, pessoas com câncer.
Com parceiros civis, a operação também viabiliza capacitação profissional. Os venezuelanos ganham postos de trabalho que brasileiros desprezam e o espanhol é idioma comum na região. Os melhores quadros, de fato, não costumam permanecer em Roraima.
Rosa Maria Medina, de 23 anos, descreve como horrível a sensação que teve com o anúncio da vitória de Maduro. Ela participou de atos em favor da oposição e sentiu que sua manifestação política a deixou em perigo. Decidiu colocar em prática algo que já havia decidido há tempo: era hora de ir embora com o filho, de 4 anos.
Ela pretende chegar a Cascavel (PR), onde encontrará o companheiro já estabelecido no mercado de trabalho. “Minha situação está muito difícil. Não consigo trabalho e a escola dele não tem aula todos os dias da semana. Não tenho com quem deixá-lo. Deixava com uma prima, mas ela também precisava ir atrás de trabalho. Quero viver em um país livre”, disse.
Quando chegam ao Brasil, os venezuelanos podem se declarar imigrantes ou refugiados. “No refúgio, ele não é obrigado a apresentar documentação venezuelana. E não temos como checar antecedentes (criminais). Na entrada normal, para residência, checamos as informações e podemos ver se há condenações”, explicou o superintendente da Polícia Federal em Roraima, delegado Ronaldo Guilherme Campos.
No posto de saúde, 90% dos pacientes estrangeiros
Ainda é madrugada quando uma fila de venezuelanos se forma do lado de fora do primeiro posto de saúde do lado de cá da fronteira, em Pacaraima. A unidade simboliza um choque de dramas sociais que cria mal estar entre brasileiros. Os estrangeiros vêm em maioria e dormem na fila, eles são atendidos primeiro e representam 90% de todos os pacientes atendidos na unidade.
Como é característico das fronteiras secas brasileiras, o trânsito de pessoas é livre e só param nos postos de controle de migração os que querem ou precisam. Na prática, os estrangeiros cruzam de Santa Elena de Uaíren para Pacaraima em busca de serviços públicos e até de aposentadoria na Previdência brasileira, como mostrou o Estadão.
Na unidade básica de saúde, são distribuídas 15 senhas por médico a cada turno. O brasileiro aposentado Pedro José da Costa, de 68 anos, chegou cedo com uma queimação no peito. Temia repercussões de um problema cardiorrespiratório que o deixou internado por 22 dias em Boa Vista. Terá de voltar mais tarde porque as senhas já estavam esgotadas.
Mãe de cinco filhos, a indígena macuxi Valdemícia Andrade, 37, trouxe a caçula Milena, de 2 meses, para as vacinas que a recém-nascida precisa tomar. As doses não chegaram como previsto na comunidade do Contão, que fica dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol, e ela preferiu a viagem de mais de quase quatro horas por uma estrada esburacada até a cidade. O deslocamento dela custará R$ 100 no orçamento da família.
Mãe de cinco filhos, a indígena macuxi Valdemícia Andrade, de 37 anos, trouxe a caçula Milena, de 2 meses, para as vacinas que a recém-nascida precisa tomar. As doses não chegaram como previsto na comunidade do Contão, dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol, e ela preferiu a viagem de quase quatro horas por uma estrada esburacada até a cidade. O deslocamento dela custará R$ 100.
“Lá tem uma unidade de saúde, mas não é equipada. Só tem agentes de saúde. E as vacinas que ela tem de tomar não chegaram. Aí é um pouco complicado porque a gente tem de vir de lá para cá para vacinar. Dei sorte porque fui a última a pegar a ficha”, afirmou.
O prefeito Juliano Torquato (Republicanos) não estava na cidade nos dias em que a reportagem permaneceu em Pacaraima. A gestão municipal não escalou representante para comentar a crise.