Um estudo realizado no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, em parceria com outras instituições de pesquisa do Brasil e do exterior, confirmou a circulação do vírus mayaro (MAYV) entre humanos em Roraima. A descoberta foi feita pela bióloga Julia Forato, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular do IB, e divulgada recentemente pela revista Emerging Infectious Diseases, publicação do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (ou CDC, na sigla em inglês). Para identificar o vírus, a pesquisadora utilizou técnicas clássicas de virologia, como o isolamento viral, além do sequenciamento de nova geração – um tipo de ensaio molecular. Desta forma, constatou tratar-se de uma linhagem de MAYV pertencente ao genótipo D, o mesmo identificado anteriormente no Amazonas, no Peru e na Venezuela.
Considerado endêmico nos continentes centro e sul-americanos, onde também é tido como negligenciado, o patógeno foi identificado pela primeira vez nas ilhas caribenhas de Trinidad e Tobago, na década de 1950. Considerado um arbovírus – vírus transmitido por mosquitos silvestres –, tem como vetor o Haemagogus janthinomys, mosquito silvestre conhecido por disseminar a febre amarela. Até agora, não há registros de transmissão do vírus mayaro no Brasil por mosquitos urbanos, como o Aedes aegypti, conhecido pela relação com a dengue. Na floresta, onde é mais comum, o MAYV infecta vertebrados que habitam as copas de árvores, como primatas, aves e roedores. Uma vez no organismo desses animais – chamados de hospedeiros amplificadores ou mesmo reservatórios –, é capaz de se replicar, ficando à espera da picada do mosquito para dar continuidade à disseminação.
Em seres humanos, a infecção por vírus mayaro causa uma doença febril aguda, facilmente confundida com dengue e febre chikungunya, por produzir, como principais sintomas, dores no corpo, fadiga, artralgia, dor e inchaço nas articulações. No Brasil, a detecção de MAYV foi historicamente registrada em estados da região Norte, como Acre e Pará, além do já citado Amazonas. Em Roraima, já havia sido detectado em animais em áreas de transição entre áreas rurais e urbanas.
Boa parte da pesquisa realizada por Forato se deu no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve), do IB, sob orientação do professor José Luiz Módena. A docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR), a bióloga Fabiana Granja também participou como coorientadora. Forato analisou amostras de soro exclusivamente de pacientes em estado febril coletadas pelo Laboratório Central de Saúde Pública de Roraima entre 2020 e 2021, durante um período em que a região enfrentava uma epidemia de dengue, logo após um surto de febre chikungunya. A mestranda testou, em sua amostragem, a ocorrência de oito arbovírus. O trabalho envolveu, ainda, técnicas como a amplificação em cadeia da polimerase, ou PCR (das iniciais de Polymerase Chain Reaction, em inglês), que permite aumentar e quantificar trechos do material genético para que se possa, eventualmente, sequenciá-los e compará-los a dados já catalogados.
O resultado revelou a presença de MAYV em 3,4% das pessoas testadas. Algumas delas, pontua a mestranda, não haviam relatado qualquer atividade laboral em área de mata, dando margem para a possibilidade de o vírus ter circulado em áreas urbanas de Roraima. O resultado de sua análise, complementa Modena, confirmou a hipótese ao identificar o arbovírus em praticamente todo o estado, inclusive dentro das cidades, não apenas nas áreas rurais e florestais. “Julia extraiu e sequenciou o genoma completo do vírus, o que tornou possível saber que se trata de um arbovírus do mesmo clado [grupo de organismos] de amostras da Venezuela e do Peru. Com isso, podemos saber um pouco mais sobre os padrões atuais de disseminação, expandindo nossa base de dados para exemplares atuais de MAYV, além daqueles que foram caracterizados desde o começo dos anos 1950”, afirma o professor.
A descoberta é fruto de uma parceria internacional que resultou na formação de um grupo para avaliar os impactos do aquecimento global e da atividade humana sobre a floresta tropical na disseminação de vírus emergentes. O esforço mobilizou 17 pesquisadores, duas universidades inglesas (Oxford University e Imperial College London) e três instituições norte-americanas (University of Kentucky, University of Texas Medical Branch e Global Virus Network), além da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Fiocruz Amazonas.
Trata-se do primeiro resultado do trabalho desse conjunto de cientistas como parte da iniciativa Amazônia +10, programa lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e com o Conselho Nacional das FAPs à Pesquisa (CONFAP). A realização contou com o apoio da Global Virus Network, do Wellcome Trust, do Burroughs Wellcome Fund, da Fundação Bill & Melinda Gates, e do National Institutes of Health (NIH na sigla em inglês) – a agência governamental de pesquisa biomédica dos EUA.
Relógio molecular de um vírus americano
Por provocar sintomas semelhantes aos de outras arboviroses bastante comuns no país, chegar ao diagnóstico correto de mayaro por critérios clínico-epidemiológicos é tarefa bastante difícil. “A hipótese diagnóstica original para todos os que testaram positivo para chikungunya ou mayaro era dengue”, observa o docente. O principal diferencial em relação à dengue é a probabilidade maior de causar artralgia e artrite crônica, condição em que as dores e inchaços nas articulações se prolongam e se tornam incapacitantes – como já ocorre com boa parte dos pacientes acometidos pela febre chikungunya. “Cerca de 50% das pessoas que têm artralgia [provocada por chikungunya] vão desenvolver sua versão crônica, podendo ficar até seis anos sofrendo com dores intensas que, dependendo da profissão, a impedem de trabalhar. É um problema social.”
À exceção do estado febril, nem todos os indivíduos testados na pesquisa apresentaram sintomas quando tiveram suas amostras coletadas. A segunda queixa principal foi dor de cabeça (82% dos participantes), dor e inchaço nas articulações (21%) e erupção cutânea (11%). “Os sinais relatados são muito gerais e podem indicar uma vasta gama de doenças, inclusive aquelas que não são causadas por vírus, mas por bactérias ou parasitas”, observa Forato, frisando a necessidade da realização de testes moleculares, feitos a partir da análise do material genético, para um diagnóstico correto.
Uma porção significativa das pessoas diagnosticadas com o vírus mayaro exercia alguma atividade laboral que exigia a entrada na floresta ou na região periurbana (faixa entre a mata e a cidade), como pesca (11% dos infectados) e coleta de castanhas, o que é um indicativo da influência do avanço da atividade humana para a propagação do MAYV. Já a incidência em Roraima — estado que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana — serve de alerta, afirma Modena. “É uma região impactada por migrações. A capital, Boa Vista, tem uma atividade comercial intensa. Pode afetar a dinâmica de circulação do vírus.” O professor acredita que, com um aumento no número de genomas sequenciados de mayaro, poderemos, no futuro, construir o “relógio molecular” desse vírus, estimando a velocidade da sua taxa de mutações e estabelecendo suas rotas de migração, para, finalmente, traçar sua história molecular.
O estudo evidenciou a circulação simultânea dos vírus mayaro e chikungunya em Roraima, surpreendendo os pesquisadores. “Não esperávamos encontrar os dois no mesmo lugar, pois estudos indicam que a infecção por um vírus pode, eventualmente, proteger a pessoa de ser infectada pelo outro, por serem muito parecidos”, diz o professor. Embora apresentem similaridades estruturais e causem sintomas semelhantes, por enquanto somente há registros do MAYV no continente americano. Segundo os pesquisadores, a limitação geográfica seria uma das causas principais do pouco investimento em pesquisas voltadas para diagnóstico e tratamento da doença que provoca.
No Brasil, a confirmação da presença do vírus no Centro-Oeste também aponta o risco de uma disseminação. “Em laboratório, já foi constatada a capacidade do Aedes aegypti em transmitir também o mayaro”, alerta a pesquisadora. Apesar da experiência laboratorial não assegurar que o mesmo aconteceria fora dali, o experimento sinaliza o risco da ocorrência de uma nova epidemia. “Como as pessoas não tiveram contato com esse vírus, são mais suscetíveis a ter uma infecção.”