Considerada um passo fundamental para que as terras indígenas (TIs) tenham a posse efetivamente garantida às comunidades tradicionais, a desintrusão das oito áreas homologadas pelo governo federal em 2023 ainda não começou. A questão virou um dos pontos de queixa do movimento indígena em relação à gestão Lula, que ainda não indicou um calendário de ações para iniciar os trabalhos.
A desintrusão de terras é, na prática, a retirada de invasores que eventualmente estejam instalados em terreno cuja situação jurídica já tenha sido formalmente definida, como é o caso de áreas tradicionais homologadas pelo presidente da República.
No caso de TIs, tornou-se historicamente comum a diferentes comunidades a presença constante de madeireiros, grileiros, garimpeiros ilegais, empresas de pesca industrial, entre outros invasores. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) demonstra preocupação com a permanência da situação nas áreas formalizadas ano passado especialmente por conta do risco de novos conflitos.
O relatório anualmente produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que o segmento indígena é o alvo principal do Estado e de grupos empresariais quando o assunto é violência no campo. Em 2023, a CPT registrou 169 ocorrências de omissão/conivência, 116 invasões, 16 casos de destruição ou poluição e 27 casos de não cumprimento de procedimentos legais que afetaram diretamente indígenas.
Dinaman Tuxá, da coordenação-executiva da Apib, destaca que a não desintrusão das terras abre caminho para a escalada da violência. “É porque a terra não fica na posse dos povos indígenas. Os invasores permanecem lá, então, se não houver desintrusão, a gente não tem a posse de fato, e sim apenas a posse de direito. Porém, nós não temos a posse pacífica e, consequentemente, isso pode gerar conflitos.”
Em 2023, as oito TIs homologadas por Lula foram: Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Uneiuxi (AM), Avá Canoeiro (GO), Acapuri de Cima (AM) e Rio Gregório (AC). A falta de desintrusão segue gerando tensão entre as comunidades. É o que afirma Adriana Tremembé, líder da área homologada no Ceará, cuja formalização ocorreu no final de abril.
“Nós continuamos no aguardo. É um desafio muito grande porque a gente fica na expectativa. Logo que há uma homologação deveria haver a desintrusão, mas faz um ano que a gente está nessa espera”, lamenta. Ela conta que o território, próximo ao litoral, tem cerca de 600 indígenas e vive sob ameaça de empreendimentos econômicos com planos de construção de rede hoteleira, parque eólico e outras intervenções.
“A gente vive nessa agonia, preocupado, e com mais de 130 não indígenas dentro do nosso território. A gente acredita que a desintrusão ajudaria a nossa TI a respirar livre dessas ameaças”, afirma a líder, que na última semana se juntou a outros indígenas para fazer cobranças presencialmente ao governo federal em Brasília (DF). Reunidas no Acampamento Terra Livre (ATL), que se encerrou na sexta (26), diferentes comitivas estiveram em várias pastas e órgãos da Esplanada dos Ministérios para levar a agenda do segmento.
“Disseram pra gente que já teriam os recursos para a desintrusão da nossa área e que isso ocorreria este ano. Esperamos que o governo execute mesmo o plano e que isso se realize o mais breve possível”, entoa Adriana, segundo a qual a gestão não deu previsão de prazo para a operação de retirada dos invasores.
Medidas
O rito de oficialização de uma TI envolve o engajamento de diferentes frentes de governo. Depois que o presidente da República assina a homologação da terra e ocorre a publicação do decreto que formaliza a iniciativa, cabe à Funai fazer o registro do imóvel em cartório imobiliário e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério da Gestão e Inovação (MGI). Um dos atos sequenciais a esse é a edição de uma portaria por parte do MJ detalhando como deverá ocorrer a desintrusão da área.
A reportagem procurou ouvir o MJ para saber por que ainda não foi feita a retirada dos invasores das TIs homologadas em 2023. Citando a Funai e o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a pasta disse não ter sido demandada a respeito do assunto. A reportagem procurou, então, os dois órgãos mencionados pelo ministério. Ao Incra, o veículo perguntou qual o status atual das oito áreas no que se refere à desintrusão, por que o Ministério da Justiça não foi acionado ainda, quando isso deve ser feito e se há um cronograma das ações relacionadas a esses trabalhos.
O órgão respondeu afirmando que “não possui nenhuma obrigação legal nas desintrusões”. “Toda a operação é coordenada pela Funai. O Incra exerce um papel assessório em colaboração institucional no que diz respeito ao cadastramento de famílias e, eventualmente, à avaliação de áreas. Conforme a Procuradoria Federal Especializada, a interface da desintrusão com a políticas do Incra se dá no cadastramento das famílias desintrusadas que têm preferência na seleção em projetos de assentamentos criados”, acrescenta a nota enviada pela assessoria de imprensa.
Procedimento semelhante foi adotado pela reportagem junto à Funai, mas não houve resposta até o fechamento desta matéria. A reportagem procurou ouvir ainda o MPI. Foram solicitadas informações sobre o que falta para o início das desintrusões e qual o passivo das terras já homologadas no país que ainda aguardam a retirada dos invasores. A pasta se limitou a dizer que “está implementando novos planos de gestão para ampliar as respostas às demandas dos povos indígenas”. “Um passo importante foi dado com a retomada do Conselho Nacional de Política Indigenista, instalado pelo governo federal, e que facilitará ainda mais o diálogo permanente e o acompanhamento cada vez mais próximo das questões dos povos indígenas”, acrescenta a nota.
A pasta argumentou ainda que “os planos de desintrusão não decorrem de uma deliberação isolada do MPI”. “São decisões colegiadas tomadas no âmbito do Comitê Interministerial de Desintrusão, órgão criado por meio do Decreto nº 11.702, de 12 de setembro de 2023. As desintrusões envolvem ações de segurança pública (vinculadas ao MJ), fiscalização ambiental (vinculadas ao Ministério do Meio Ambiente), promoção à saúde indígena (vinculadas à Saúde) e emprego de logística militar e devem ser precedidas de cuidadoso planejamento. A abertura de novas frentes de ações perpassa por uma apuração mais detalhada do Comitê, com cada uma das instituições envolvidas avaliando suas condições materiais e humanas para novas intervenções.”
O decreto de criação do comitê prevê, entre outras coisas, a existência de um grupo técnico com representantes de entidades civis e outros atores, mas a Apib, uma das organizações citadas no documento como convidadas a participarem do colegiado, disse não ter notícia do funcionamento do grupo. A reportagem procurou saber, então, em quais datas o comitê se reuniu desde sua criação, em setembro, e onde estão as atas das reuniões, mas esses dados não estão disponíveis na página do MPI.
Um novo contato foi feito com a assessoria de comunicação do ministério solicitando essas informações, mas a demanda não foi respondida até o fechamento desta matéria. O Guia de Transparência Ativa para Órgãos e Entidades do Poder Executivo Federal, editado em 2022 pela Controladoria-Geral da União (CGU), recomenda que conselhos e órgãos colegiados indiquem dados como “informações sobre estrutura, legislação, composição, data, horário e local das reuniões, contatos, deliberações, resoluções e atas”.