A flexibilização dos pisos de Saúde e Educação pode liberar até R$ 131 bilhões para outros gastos de custeio e investimentos até 2033, mostra um relatório divulgado pelo Tesouro Nacional. A projeção não significa por si só uma recomendação política, mas o exercício feito pelos técnicos do órgão coloca o debate sobre a necessidade de rever essas despesas para garantir a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal no médio prazo.
Sem mudanças, o espaço para os demais gastos seria totalmente consumido até o fim desta década. Na prática, a regra criada pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) estaria condenada ao estouro. A necessidade de harmonizar essas vinculações com o novo arcabouço fiscal foi tratada pela primeira vez em abril de 2023 por Haddad em entrevista à Folha. Desde então, porém, ele vem delegando a responsabilidade ao Ministério do Planejamento e Orçamento, incumbido da agenda da revisão de gastos.
O tema é politicamente delicado para o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sobretudo diante da defesa histórica da esquerda por mais verbas para as duas áreas. Haddad inclusive foi ministro da Educação nos governos Lula e Dilma Rousseff (PT).
Em 2024, os mínimos constitucionais voltaram a ser vinculados à arrecadação. O piso da Saúde equivale a 15% da RCL (receita corrente líquida), enquanto o da educação representa 18% da RLI (receita líquida de impostos). O próprio arcabouço fiscal, porém, diz que o limite de despesas cresce em um ritmo equivalente a 70% da alta real das receitas. Em outras palavras, a regra garante uma expansão estruturalmente mais veloz da arrecadação.
Se a receita que baliza os mínimos de Saúde e Educação cresce mais rápido do que o limite sob o qual eles serão acomodados, há uma tendência natural de compressão das demais despesas abaixo do novo teto. No cenário atual, que considera as medidas de arrecadação já aprovadas pelo governo Lula, o espaço para despesas discricionárias com custeio e investimentos será totalmente comprimido a partir de 2032.
As dificuldades, porém, devem se manifestar até antes, com o estrangulamento gradual de políticas públicas, a exemplo do que ocorreu sob o teto de gastos instituído pelo governo Michel Temer (MDB).
Isso acontece porque mesmo dentro das discricionárias há algumas despesas “rígidas”, isto é, não têm o rótulo formal de obrigatória, mas são carimbadas, e o governo precisa garantir sua execução. Estão nessa categoria os pisos de Saúde e Educação e as emendas parlamentares.
Há um segundo complicador que potencializa essa tendência de achatamento dos demais gastos. Haddad e sua equipe apostam em uma série de medidas de arrecadação para manter uma trajetória de melhora contínua das contas públicas até 2026. Se eles forem bem-sucedidos nessa estratégia, o balanço entre receitas e despesas melhora, mas os pisos serão calculados sobre uma arrecadação ainda maior, ampliando a pressão sob o limite de gastos.
O Tesouro chama esse quadro alternativo de “cenário de referência”. Nele, o espaço para despesas discricionárias é exaurido já em 2030, com redução gradual antes disso.
É diante desse contexto que os técnicos do órgão formulam opções para os pisos de Saúde e Educação, estipulando o valor garantido para 2024 como ponto de partida. Os valores obtidos refletem o espaço adicional para as demais despesas discricionárias, que não incluem os gastos “rígidos”.
Um primeiro exercício simula a correção dos mínimos pela mesma regra do arcabouço (inflação mais uma alta real entre 0,6% e 2,5%). A diferença não seria tão grande nos primeiros anos, mas a folga ficaria gradualmente maior, chegando a R$ 62 bilhões em 2033 (calculado a valores de hoje).
O segundo cenário prevê a correção dos pisos pelo crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) real per capita. O resultado seria semelhante, com um alívio crescente até alcançar R$ 69 bilhões em 2033.
Em ambos os casos, os valores ainda seriam insuficientes para afastar o risco de estouro do arcabouço no cenário fiscal almejado por Haddad, com melhora do resultado até 2026.
O terceiro cenário seria o único com potencial de manter a sustentabilidade da regra, segundo as simulações do Tesouro. Nele, os pisos passariam a acompanhar o crescimento populacional, de forma a manter constante o gasto per capita.
O espaço adicional para despesas de custeio e investimentos seria sentido já em 2026, avançando de forma consistente até chegar a R$ 131 bilhões em 2033.
A professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Ligia Bahia, especialista em saúde coletiva, reconhece que a vinculação de recursos engessa o Orçamento, mas ressalta que esse padrão se consolidou em um país no qual os déficits de saúde e educação são “abissais”.
“Em países desenvolvidos não é necessário vincular, mas há um amplo consenso sobre os gastos públicos crescentes com saúde. No entanto, os gastos com saúde crescem a taxas sempre acima de parâmetros populacionais e desempenho do PIB. Desvincular das receitas para vincular ao PIB seria uma estratégia na contramão das recomendações internacionais, inclusive de preparação para emergências sanitárias”, diz.
Segundo ela, a pandemia de Covid-19 contribuiu para reforçar que os parâmetros para projetar despesas com saúde não são lineares e dependem de mudanças no perfil demográfico e epidemiológico, da velocidade de inovações tecnológicas na saúde e de iniquidades sanitárias.
“Despesas devem ser necessariamente contracíclicas. Em momentos de recessão econômica, os gastos públicos adequados com saúde impedem que indivíduos e famílias se endividem e não consigam se reerguer em função de despesas com pessoas doentes”, afirma Bahia.
“Não se trata de defender a vinculação, mas sim encontrar caminhos que assegurem impacto na melhoria da saúde e condições de vida”, diz.