Em 2023, Roraima passou por pelo menos três “apagões” de grandes proporções – em março, abril e novembro. As quedas de energia são constantes no cotidiano da população do estado, que não está conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIC), responsável pela produção e distribuição de energia para todos os outros estados brasileiros.
O fornecimento da energia de Roraima é realizado hoje quase que integralmente pela empresa Roraima Energia, que abastece os 15 municípios com cerca de 175 mil consumidores. O parque energético da empresa é formado por 17 termelétricas (UTE) e 1 pequena hidrelétrica (UHE), que geram em média 200 MW (megawatts) por dia.
Para integrar Roraima ao SIC, é preciso construir uma linha de transmissão entre Manaus e Boa Vista, com extensão total de 715 quilômetros, sendo 122 deles dentro da Terra Indígena Waimiri Atroari. A construção do chamado linhão de Tucuruí foi autorizada em setembro de 2023, depois de um acordo judicial que acabou com as ações civis públicas que impediam a operação. A previsão é que as obras demorem 2 anos e meio e custem R$ 2,6 bilhões.
Uma das estratégias para manter o abastecimento do estado até lá é a volta da compra de energia elétrica da Venezuela, anunciada pelo governo Lula em dezembro. Entre os anos de 2001 e 2019, o estado foi abastecido pela energia produzida no país vizinho, mas o acordo foi rompido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A solução para a produção de energia, então, foi o uso de usinas termelétricas.
Além de poluente, a energia termelétrica é mais onerosa aos consumidores. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, a produção das usinas em Roraima custa cerca de R$ 1.700 por MW por hora. Ao todo, 51 usinas a diesel operam no estado. No novo acordo com a Venezuela, o valor do MW por hora estará entre R$ 900 a R$ 1.080.
Mas a integração do estado ao SIC não deve ser suficiente para resolver o problema do abastecimento de eletricidade. Como forma de emancipar Roraima da energia proveniente da Venezuela, a Empresa de Pesquisas Energéticas do Brasil (EPE) iniciou em 2010 um mapeamento em áreas do estado que poderiam comportar hidrelétricas.
A possibilidade com maior potencial de produção de energia é a usina Hidrelétrica de Bem-Querer, que está sendo projetada para ter 8 quilômetros de extensão, provocando um desnível de aproximadamente 15 metros no rio Branco, o principal do estado. Se construída, ficará localizada no município de Caracaraí, bacia do rio Branco ao sul do estado. Acima do ponto do barramento da hidrelétrica, 90% da população depende do rio para abastecimento ou alimentação.
A capacidade máxima de produção da usina será de 650 MW por dia, para abastecer os municípios de Bonfim, Boa Vista, Caracaraí, Cantá, Iracema e Mucajaí. Entretanto, por conta da seca sazonal, esse potencial só pode ser atingido em metade do ano – entre outubro e março. Na outra metade do ano, a instalação forneceria menos energia ou poderia até mesmo parar de funcionar, como aconteceu na usina hidrelétrica de Santo Antônio, na região de Porto Velho (RO). A usina ficou parada por duas semanas em outubro do ano passado.
Estudos de impacto
O projeto de instalação da usina está passando por estudo de impacto ambiental em fase de entrevista, após o cadastro socioeconômico dos moradores da região. As comunidades ribeirinhas e indígenas já se posicionaram contra a construção. Essa posição foi informada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em carta escrita pelas lideranças dos povos indígenas de Roraima, durante a 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas.
No documento, as lideranças pedem que os povos indígenas das nove regiões afetadas pela construção sejam consultados e que o Projeto de Decreto Legislativo 2540/2006, que prevê a construção da usina hidrelétrica, seja arquivado. A reportagem entrou em contato com a empresa responsável pela obra para questionar sobre a mobilização dos povos indígenas, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Usina Bem-Querer, realizado pela EPE, foi iniciado em 2018, mas sua conclusão foi adiada para 2023 por conta da pandemia de covid-19. Neste ano, duas etapas foram concluídas.
A primeira, realizada entre fevereiro e abril, consiste em pesquisa de campo para avaliar se existem áreas de alto potencial arqueológico no local em que a usina deve ser construída. A segunda fase consistiu em análise socioambiental na região, para avaliação dos impactos positivos e negativos que podem ser causados pela hidrelétrica.
De acordo com o engenheiro civil Mesaque Silvestre, a obra de uma usina hidrelétrica no estado precisa ser bem pensada, uma vez que os impactos ambientais e sociais começam antes de sua construção. “Vai ser necessário ocupar uma área imensa para construir o canteiro de obras, porque em hidrelétricas muitas peças e estruturas são construídas no local. Isso requer um espaço significativo para construir peças de concreto armado e estruturas próprias para hidrelétrica”, afirma Silvestre.
Possíveis efeitos negativos
Mesmo que as usinas hidrelétricas usem um recurso renovável, seus impactos sociais e ambientais são abrangentes. Além de impactar na vida de moradores locais e pescadores que têm sua renda principal proveniente do rio, a construção poderá causar alagamentos que afetam a fauna e flora da região.
De acordo com o professor Alberto Cardoso, membro do movimento Em Defesa do Rio, a área alagada pela Bem-Querer será de aproximadamente 500 km². “Parte da BR-174 vai ser inundada, partes dos municípios de Mucajaí e Iracema serão inundadas. A cidade de Boa Vista vai ter sérios problemas com a construção dessa hidrelétrica, as nossas praias do Rio Branco e Caumé, por exemplo, que são utilizadas para o lazer da sociedade, vão desaparecer”, alerta.
“Em 2012, a indenização que deveria ser paga aos moradores das partes afetadas pela construção da usina já chegava a aproximadamente 280 milhões. Agora, com Roraima sendo a nova fronteira agrícola, o valor de suas terras multiplicou 10 vezes”, explica o agrônomo Fabrício de Freitas. A EPE divulgou em 2019 que o valor total da implantação da hidrelétrica chegaria a R$ 5 bilhões.
Esses não são os únicos prejuízos. Outra preocupação é a possibilidade de o lago produzir metano. Isso porque o reservatório projetado para a usina Bem-Querer é raso. Em regiões quentes, esse tipo de corpo d’água produz metano, um dos principais gases de efeito estufa.
Os membros do movimento ambientalista de Roraima demonstram, ainda, preocupação com o possível andamento da obra. A organização Em Defesa Do Rio realizou várias mobilizações ao decorrer de 2023 contra a implantação da hidrelétrica. “Estamos buscandos nesse momento mais crítico fazer uma discussão em relação à construção da hidrelétrica do Bem-Querer, pois é necessário que a sociedade esteja a par dos impactos que essa usina poderá causar para o nosso estado”, explica Cardoso.
Devido às mudanças climáticas, o rio Branco tem perdido parte do seu volume. No dia 6 de novembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) divulgou que o nível do rio estava em 0,77 m, a menor medida de 2023. De acordo com a Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (CAER), a marca é 4,04 metros menor do que a medida do mesmo período de 2022.
Há alternativas sustentáveis?
Em maio de 2019, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) promoveu um leilão como forma de incentivar projetos alternativos para solucionar a falta de energia no estado e reduzir a dependência em relação à empresa Roraima Energia.
O projeto Térmica a Biomassa da OXE Energia ganhou o leilão. O projeto pretende utilizar a biomassa de madeira reflorestada, do tipo Acacia mangium, para ser combustível das termelétricas. Na iniciativa, a fumaça do cavaco (madeira triturada) queimado é passada por filtros como forma de diminuir os impactos ambientais.
“A biomassa pode ser uma solução, mas ela também pode ser um problema, ela precisa ser levada com muita seriedade para dar certo. Agora é importante a gente ficar atento, pois toda fonte de energia gera algum impacto. Esses impactos são de tamanho diferente dependendo da fonte que você usa e também da forma que você faz a energia”, esclarece Ciro Campos, do Fórum de Energias Renováveis de Roraima.
No total serão 4 usinas térmicas a biomassa (Bonfim, Cantá, Pau Rainha e Santa Luz) construídas em dois clusters nos arredores de Boa Vista, com potência nominal de 10 MW por UTE, totalizando 40 MW por dia. Segundo a empresa, o objetivo é aumentar a diversificação de suprimento de fontes energéticas em Roraima, atendendo à evolução do número de consumidores de energia elétrica.
Outro movimento crescente no estado é o uso de placas de energia solar, como uma alternativa sustentável de economizar energia. É o caso da Usina Fotovoltaica da Universidade Federal de Roraima (UFRR). A usina está sendo construída no campus Paricarana e terá 1.116 painéis fotovoltaicos, composta por 4 módulos com 279 painéis cada, em frente ao Centro Amazônico de Fronteiras. Sua produção anual de energia será de 656 MW. A conclusão da obra está prevista para dezembro deste ano.
Em entrevista, o reitor Geraldo Ticianeli afirmou que a usina reduzirá os custos de consumo de energia na universidade. “Passaremos a utilizar energia limpa e sustentável, de origem solar, uma das mais importantes fontes de energia renovável”, explica.
Esta hidroelétrica será outra Balbina. Um desastre anunciado.
EXCELENTE MÁTERIA