A Miss Trans Roraima 2023, Paola Abache, revela sua íntima relação com a passarela e o que planeja para o reinado em 2024. A indígena Warao e migrante venezuelana também narra a trajetória de como, aos 19 anos e em meio ao preconceito, tornou-se “cacique” de um abrigo indígena da Operação Acolhida, em Boa Vista.
Hoje, aos 23 anos e vivendo no Centro de Acolhida Rondon 3, na capital de Roraima, Paola sonha em conquistar as passarelas mundo afora. Ela quer viajar, modelar, estudar e incentivar outras mulheres a lutar por seus sonhos. Além disso, a miss deseja retornar e enfrentar o preconceito sofrido dentro de sua própria comunidade, Araguabisi, na Venezuela.
Com seu prisma, a “reina” (rainha em espanhol) eleita na Parada LGBTQIAPN+ 2023 de Roraima fala sobre caminhos para resiliência, compartilhando suas inspirações e memórias da infância, quando compreendeu sua identidade como pessoa LGBTQIAPN+. Com a palavra, Paola Abache.
Repórter: Paola, de que forma você se entendeu como pessoa LGBTQIAPN+?
Paola: Quando nasci e me entendi como pessoa, soube que estava no corpo errado. Por dentro eu me sentia mulher, mas quando me olhava no espelho via um homem. Descobri aos 6 anos que me sentia atraída por homens e gostava de me vestir como as mulheres. Eu via aquelas mulheres maquiadas, bem vestidas e eu queria ser como elas.
Na época, não tinha conhecimento do que era ser uma pessoa trans e também não sabia como demonstrar ao mundo, família e amigos o que eu sentia sobre meu corpo.
Principalmente porque na comunidade onde vivia, Araguabisi, tinha muitas crenças. Eu me vestia sempre escondida, dentro de casa, mas espalharam o que eu fazia para a comunidade inteira, então comecei a receber ataques discriminatórios.
Repórter: Conta um pouco sobre sua vivência na comunidade e o deslocamento para o contexto urbano?
Paola: A verdade é que eles não aceitaram quem eu era, quem eu sou. Hoje, estão mais avançados porque muitos jovens vão estudar ou trabalhar fora da comunidade e acabam se descobrindo na cidade como LGBT. Mas antes, havia muita discriminação.
Falavam na minha cara, sem vergonha ou medo: “Por que você é estranha?”, “Por que quer se vestir de mulher se você nasceu homem?”. Eu nunca respondia, mas por dentro chorava, me sentia triste, magoada.
Já aos nove anos, comecei a me vestir com a ajuda dos meus primos e primas. Aos 12 anos, comecei a sair na rua vestida de mulher; minha família já sabia. Naquele tempo, eu ainda ia para a discoteca da cidade próxima como transformista, apenas me vestia como mulher, mas era considerada um homem.
Foi quando minha família decidiu morar na cidade de Tucupita que aprendi o que era ser transsexual e falei: “Ah, eu sou trans porque é assim que me sinto, que me vejo”. Apesar de estar na cidade, não consegui estudar porque minha mãe não tinha como custear meus estudos; então, fui trabalhar.
Repórter: Com o que você trabalhava e em que momento decidiu vir morar no Brasil?
Paola: Em Tucupita, aos 18 anos, trabalhava como vendedora de roupas e depois fui ser empregada doméstica. Aos 19, decidi viajar para Roraima porque na Venezuela a situação já não estava boa: pouca comida, emprego escasso e custo de vida alto. Foi quando comprei quatro cestas básicas e peguei uma van com destino à Pacaraima sem saber o que esperar do futuro.
Quando cheguei lá, fiquei duas semanas na rua até conseguir os documentos necessários para entrar no Abrigo da Operação Acolhida. Na época, já me entendia como mulher, por isso, ao fazer a triagem na fronteira, pedi que meu nome nos documentos brasileiros fosse Paola Abache. Um novo nome para uma nova vida.
Ainda morei um ano no município, mas o emprego também era escasso por ser uma cidade pequena e fronteiriça. Pedi para ser transferida para um abrigo em Boa Vista.
Repórter: Em Boa Vista, por sete meses, você foi cacique do maior abrigo indígena da América Latina, segundo a Acnur. Como foi ter tamanha responsabilidade aos 19 anos? Você sofreu preconceito por ser uma liderança mulher trans?
Paola: No abrigo Waraotuma a Tuaranoko, que significa “lugar de repouso até que possa partir para outro”, seis caciques coordenavam a distribuição de alimentos, a limpeza e organização do ambiente. Quando fui escolhida cacique, meu maior desafio foi enfrentar o preconceito por parte dos outros caciques.
Não aceitavam uma mulher trans e ainda com 19 anos para liderar. Fizeram reuniões com os coordenadores da Operação Acolhida no abrigo para que eu deixasse o cargo. No começo, eu não queria porque era muita responsabilidade, mas após ouvir dizer que eu não era capaz de liderar, decidi assumir de fato a função.
Com o passar do tempo, ganhei a confiança de todos os caciques e consegui provar que era tão capaz quanto eles de ser uma liderança e lutar ao lado do meu povo. Ali, aprendi a nunca abaixar a cabeça.
Repórter: O abrigo Waraotuma a Tuaranoko foi desativado. Hoje, os indígenas que lá estavam vivem no Abrigo Rondon 3 e tem novos caciques. Mas essa nova experiência como miss, como começou?
Paola: Eu sempre quis ser miss e desfilar em uma passarela. Na infância, era viciada naqueles programas de Miss Universo e Miss Venezuela. Imitava os discursos, a forma de andar, como elas acenavam. Me encantava! Me preparei a vida toda para ser miss, não cheguei aqui à toa.
Até que vi nas redes sociais da Miss Trans Roraima 2022, Lilith Cairú, o anúncio do concurso. Falei “meu Deus, é a minha hora”. Enviei uma mensagem e ela me orientou sobre como poderia me inscrever.
Depois de inscrita, começaram a aparecer os obstáculos. Pediram patrocinador e eu não tinha. Roupas de gala e sapatos também não tinha. Só no último dia, consegui emprestado o vestido e o sapato. Um amigo também se ofereceu para me maquiar de graça.
Chegou o grande dia e eu estava tão nervosa, mas quando subi na passarela só consegui lembrar daquela Paola com seis anos, que no fundo já sabia que era Paola. Lembrei das roupas que vestia escondida, das palavras que ouvi da minha comunidade.
A cada passo, uma lembrança, o choro na garganta. Mas era como se eu flutuasse. Como se eu tivesse nascido para estar naquela passarela. Quando recebi a coroa, chorei e agradeci a Deus porque não achei que ia ganhar. Minha roupa não era a melhor, meu cabelo, maquiagem… Foi o meu sorriso e confiança que encantaram.
Repórter: Agora já eleita, quais os planos para o reinado em 2024?
Paola: Eu tinha o sonho de conhecer minhas grandes inspirações como miss. A Lilith já conheci no dia do concurso, mas quero muito conhecer a Mari Wapichana, Miss Indígena de Roraima 2022. A Mari tem uma presença muito forte que sempre me inspirou.
Também quero fortalecer os laços entre os indígenas Warao e os indígenas de Roraima. Creio que juntos podemos fortalecer a luta pelos nossos direitos e ampliar nossa autonomia. Meu desejo é que todas as pessoas, independentemente de serem LGBTQIA+, indígenas, negras, mulheres, migrantes, possam alcançar seus sonhos, mas precisam de oportunidades. Quero poder ocupar lugares e falar em defesa dos meus. Que este seja um reinado pautado na coletividade, no fortalecimento de identidades de pessoas como eu.
Penso também em viajar. Para onde me chamarem, pego minha mala e vou. Quero viajar pela América Latina e pelo mundo. Quero conhecer a realidade de outros lugares, de outros concursos de miss. Quero estudar, aperfeiçoar minha forma de andar, vestir, maquiar para assim ensinar outras que têm o mesmo sonho que eu. Saibam que modelar é uma arte. Existe talento, disciplina e esforço.
Mas um dos principais objetivos é voltar à minha comunidade e visitar outras comunidades indígenas da Venezuela para falar sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+. Quero enfrentar de frente o preconceito que as crenças deixaram no meu povo. Tem muitos indígenas como eu lá, precisando de uma palavra de coragem, de força para decidir ser quem são.
Repórter: Então você pensa em participar de outros concursos de miss mundo afora?
Paola: Eu quero ter a oportunidade. Se eu tiver, agarro com todas as forças. Aonde eu puder chegar, seja em concursos regionais, nacionais ou mundiais. O problema é que não se chega nesses espaços sozinha. Assim como eu tive a ajuda de pessoas para chegar até aqui.
Tinha muito receio de não ser aceita nos lugares aqui no Brasil por ser migrante, mas agora entendo que carrego comigo toda uma representatividade. Então, eu preciso dar o exemplo.
Infelizmente, ainda vivemos em um mundo onde mulheres trans não são consideradas mulheres, por isso, a luta é para mostrar que nós somos sim capazes de estar em uma passarela desfilando, usando um vestido, uma faixa e coroa. Nós também podemos ser rainhas e donas de nossas próprias vidas.
Repórter: Paola, nós estamos nos despedindo dessa entrevista tão linda e cheia de vida. Gostaria que você deixasse uma mensagem inspiradora para as pessoas que estão lendo essa entrevista.
Paola: Primeiramente, a mensagem que deixo é que não desistam dos seus sonhos. Sonhar ainda é de graça no mundo, então vale a pena. Se você tem um objetivo, corra atrás dele e não deixe ninguém dizer que você não pode. Vire as costas, tape os ouvidos. O mundo é perverso sim, vai querer nos oprimir, nos enfraquecer. Vai querer ditar quem você é. Mas só você sabe quem é de verdade. Lute, estude, trabalhe, seja honesta, esteja perto das pessoas que te amam, busque redes de apoio porque família não é só aquela de sangue. Aqui no Brasil também ganhei família.
Somente aos 23 anos eu realizei um sonho de infância. Tenho muitos ainda para realizar. Não vou parar por aqui porque minha mãe e minha família me ensinaram a ser forte. Sou muito grata ao Brasil por todo o acolhimento recebido, às pessoas da comunidade LGBTQIA+ de Roraima que me deram a oportunidade de ser ‘reina’ trans em 2024. Será um ano de sucesso.