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A crise desencadeada pelo referendo convocado por Nicolás Maduro sobre a região de Essequibo se tornou uma oportunidade usada pelas Forças Armadas brasileiras para tentar convencer o Congresso a votar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que destina 2% do PIB para os gastos em Defesa. De autoria do líder do PL, o senador Carlos Portinho (PL-RJ) , a PEC dos 2% conta com apoio unânime das fileiras bolsonaristas no Senado e também com a simpatia de governistas, como Jaques Wagner (PT-BA).

A possibilidade de o Brasil se ver envolvido com um conflito armado em sua fronteira norte fez com que o Exército adiantasse em um ano a transformação do esquadrão de cavalaria mecanizado de Boa Vista no 18.º Regimento de Cavalaria Mecanizado. A unidade que faz parte da 1.ª Brigada de Infantaria de Selva terá seu efetivo triplicado – um regimento conta com três esquadrões, passando de cerca de 230 homens para cerca de 700. Na semana passada, ele começou a receber 16 veículos blindados multitarefa Guaicurus.

Além disso, 12 blindados Guaranis devem ser mandados ao novo regimento. Atualmente, o esquadrão de Boa Vista conta com sete desses blindados, que podem ser equipados com canhão de 30 mm, e um punhado de EE-9 Cascavel ainda não revitalizados, cujo armamento principal é um canhão de 90 mm. Nada disso seria efetivo contra um carro de combate como o tanque T-72. A solução seria o Centauro II, blindado caça-tanque comprado pelo Exército em 2022, cujas primeiras duas unidades estão em teste na Itália.

Mas aí entra outro problema: falta estoque de munição para o canhão 120 mm. A baixa dos estoques mundiais de munição é uma das consequências da guerra da Ucrânia. Isso se aplica ainda para outros calibres importantes, como o 105 mm usado pelos tanques Leopard 1 e a munição de artilharia de 155 mm. Não só. Mesmo com fabricantes como a alemã Rheinmetall AG abrindo novas linhas de produção para munição antiaérea, quase tudo está sendo consumido pelas guerras na Europa e em Gaza.

Mas não é apenas a falta de estoques de munição 120 mm, em relação à qual o Exército não dispõe ainda de capacidade de produção, o que só deve acontecer em quatro ou cinco anos, quando os primeiros Centauros comprados da Iveco e da Leonardo começarem a ser fabricados no Brasil – os primeiros lotes serão produzidos na Itália –, conforme prevê o contrato de transferência de tecnologia para a produção nacional da munição. Há outro problema grave para a garantia da soberania nacional na região norte: a ausência de artilharia antiaérea de média e grande altura.

Só em novembro o Exército lançou um consulta pública para fazer uma pesquisa de preços no mercado internacional entre fornecedores para seu futuro sistema de artilharia antiaérea de média altura. Parte do Programa Estratégico do Exército Defesa Antiaérea, o sistema para média altura deve ser capaz de atingir alvos entre 3 mil e 15 mil metros – acima dessa altitude, a responsabilidade passa a ser da defesa antiaérea de grande alturas, a cargo da Força Aérea Brasileira. A consulta termina no próximo dia 29.

E sem um sistema antiaéreo de média e grande altura, bem como sem ter ainda um míssil tático de cruzeiro com alcance de 300 quilômetros – o MTC-300 está ainda em fase de testes na Avibrás –, a capacidade de pôr em prática um conceito estratégico como o A2/AD (antiacesso/negação de área) fica altamente comprometida. Não só. Apenas duas das seis brigadas de infantaria de selva fazem parte das Forças de Prontidão (FORPRON), do Exército.

Marinha aposenta embarcações

Ao mesmo tempo em que o Exército – depois de quase uma década de atraso – procura um sistema de defesa antiaérea de média altura, a Marinha anunciava a quarta aposentadoria de uma embarcação da Força Naval neste ano: o Navio de Desembarque de Carro de Combate (NDCC) Mattoso Maia, usado pelo Corpo de Fuzileiros Navais. Antes haviam sido desativados os submarinos Tamoio, Tapajó e Timbira. Em entrevista à coluna, o comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, disse que a Força deve aposentar 43 embarcações até 2028 ou cerca de 40% de seus meios operacionais.

De R$ 79 milhões necessários para recompor a munição da Marinha, só R$ 6,8 milhões foram alocados em 2023. No mesmo período, devem entrar em operação na Marinha – se não houver novos atrasos – 12 novas embarcações nesse período, entre as quais quatro fragatas e três submarinos convencionais. É justamente para recompor a Esquadra e garantir a prontidão da Força que Olsen está se empenhando na aprovação da PEC dos 2% do senador Portinho.

Na semana passada, o almirante Olsen disse: “A baixa de um meio, sem a correspondente recomposição, pode implicar a degradação de capacidades da Força. Desde 2017, houve uma expressiva frustração orçamentária da ordem de R$ 3,3 bilhões, sendo importante buscar a garantia da regularidade nos recursos das Forças Armadas dentro da proposta de sustentabilidade financeira de 2% do PIB, para que o País venha a recuperar as suas capacidades.”

Enquanto Olsen se manifestava, o Exército enviava por suas redes uma mensagem esclarecendo seus homens que o movimento do lado brasileiro da fronteira tem sido “normal”, destacando o estado de prontidão da Força. Analistas militares são unânimes em afirmar que, apesar das limitações do País, o Brasil tem capacidade de dissuasão e credibilidade para mostrar que é capaz de defender seu território. Eles também esperam que a crise de Essequibo seja uma oportunidade de reflexão do mundo político sobre a importância da Defesa Nacional.

Há muito caminho, no entanto, até a construção de um consenso no País. À esquerda, aposta-se na priorização do poder aéreo e do naval como estratégia antiacesso e negação de área por meio da redução das atribuições subsidiárias das Forças. Esse é o discurso de petistas como José Genoíno, que esteve na semana passada em Brasília no lançamento do livro O que Fazer com o Militar, do professor Manuel Domingos Neto. À direita, após os estranhamentos do dia 8 de janeiro, a reunião de senadores em torno da PEC dos 2% parece buscar a paz com a caserna, sem alterar as estruturas atuais das Forças.

O mundo nos relembra que estamos mais próximos da guerra do que da paz universal. Ao escrever sua obra sobre Clausewitz (Penser la guerre , Clausewitz, l’age planétaire), Raymond Aron concluiu que, na era nuclear, “a única chance de salvar a humanidade dela mesma seria que a inteligência do Estado ‘personificado’ controlasse os armamentos”. Aron se questionava: “Será necessário acreditar que, amanhã, essa aposta na razão seja também batizada de a grande ilusão?” E concluía que as armas de destruição em massa provocaram uma mutação na forma de se fazer a guerra e não uma mutação nas relações interestatais.

Aron discorda dos que acreditavam que as relações entre os Estados eram apenas um fragmento de um vasto conjunto, que incluía trocas entre indivíduos, membros de sociedades distintas, movimentos sociais ou empresas, indiferentes às fronteiras nacionais. Rejeitava ainda quem acreditava que a soberania dos Estados se tornara uma ficção. “Eles esquecem que os centros de poder em Moscou, em Pequim e em Washington continuam a dispor de instrumentos de violência, como exércitos, esquadras, aviação e armas de destruição em massa. Nenhum desses homens deduziu das derrotas do passado a inutilidade da força.”

No sábado, o todo-poderoso ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino, escreveu uma mensagem no X, ex-Twitter, no qual dizia que a diplomacia “de paz sempre foi o instrumento para alcançar os mais legítimos interesses de nossa República”. Reproduzia mensagem do ditador Maduro. E, assim, Essequibo parece caminhar para se tornar apenas um tema a mais da campanha eleitoral venezuelana em vez de uma nova guerra a soterrar novas ilusões. Até quando?

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