Pelo menos 12 crianças Yanomami foram adotadas por famílias não indígenas nos últimos cinco anos, em contradição ao que prevê o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A lei estabelece que é obrigatório dar prioridade a inserção familiar nas próprias comunidades ou entre indígenas da mesma etnia.
Um único abrigo em Boa Vista, administrado pelo governo estadual, recebeu 19 crianças Yanomami ao longo dos últimos quatro anos. A maioria tinha problemas de saúde e foi encaminhada à unidade num contexto de abandono familiar.
Tanto as adoções quanto os encaminhamentos a abrigos foram feitos sem irregularidades e sem retirada forçada ou ilegal de crianças do convívio de pais yanomamis que peregrinam até cidades de Roraima, como Boa Vista, segundo o TJ (Tribunal de Justiça) e o Ministério Público do estado.
Documentos produzidos pelos dois órgãos detalham a realidade de adoções e encaminhamentos a abrigos envolvendo crianças da maior terra indígena do Brasil.
Diante da crise humanitária, sanitária e de saúde no território, o CIR (Conselho Indígena de Roraima) enviou ofícios em que pede informações sobre crianças e adolescentes yanomamis abrigadas em instituições públicas ou em fase de adoção.
“Chegou a nosso conhecimento que crianças indígenas yanomamis que vêm às cidades em fluxos pendulares estão sendo encaminhadas para adoção e seus pais, destituídos do poder familiar”, diz o CIR nos ofícios. “A grave situação de calamidade pública e de invasão territorial pelo garimpo ilegal na terra indígena provoca profundas alterações na vida das comunidades.”
O documento foi enviado em 31 de janeiro ao TJ, Ministério Público estadual, MPF (Ministério Público Federal), Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, secretarias do governo estadual e conselhos tutelares.
As respostas de TJ e Promotoria ao CIR detalham dados sobre adoções e encaminhamentos a abrigos. E negam irregularidades.
O MPF, por sua vez, comunicou a instauração de um procedimento preliminar de investigação -chamado notícia de fato- para apurar denúncias de abrigamento e adoção irregulares de crianças yanomamis. Como primeiras providências, o procurador Alisson Marugal pediu dados a órgãos do estado e do município e às duas varas de infância e juventude do TJ de Roraima.
A área de infância e juventude do TJ elaborou um documento de 17 páginas, encaminhado ao CIR, em que detalha os dados sobre adoções de crianças yanomamis.
“O presente estudo demonstra claramente a inexistência de irregularidades gerais nas adoções realizadas no estado de Roraima”, cita o documento. “Demonstra também ser mentirosa a afirmação de que crianças indígenas são retiradas de suas famílias e colocadas para adoção, por simplesmente estarem em movimento pendular para as cidades.”
Segundo o TJ, houve adoção de 15 crianças indígenas desde 2018, das quais 13 são yanomamis. “Apenas uma foi mantida na própria comunidade -adotada por indígenas, sendo as demais adotadas por não indígenas”, diz.
O documento cita o artigo do ECA que obriga prioridade de inserção familiar na mesma etnia ou comunidade. “Nos processos de adoção que envolvam indígenas, além das partes habituais, sempre há intervenção da Funai, de órgãos da saúde indígena, além de confecções de laudos antropológicos e, quando solicitado, participação de associações.”
Há casos em que as crianças foram entregues pela família diretamente aos adotantes. Na maioria das vezes, houve encaminhamento a instituições públicas de acolhimento.
A maior parte dos casos envolve abandono em hospitais, segundo o TJ. Nove crianças tinham problemas de saúde, deficiência visual, deficiência de locomoção ou má-formação congênita, conforme o tribunal.
Dos 29 processos de adoção em curso no TJ, seis envolvem crianças indígenas -quatro são yanomamis.
Sobre os abrigos, o tribunal informou que há oito crianças acolhidas, das quais apenas duas estão aptas à adoção. Uma tem 7 anos e a outra tem 12. Ambas têm graves problemas de saúde, conforme o TJ.
Entre as crianças abrigadas, duas foram encontradas em situação de abandono nas ruas. Outra foi hospitalizada após acidente de trânsito, segundo o tribunal.
Já o Ministério Público apontou a existência de uma ação de destituição familiar, “suspensa em razão da possibilidade de reintegração familiar”.
Em 2020, o abrigo estadual recebeu nove crianças yanomamis, dos quais seis são irmãos que chegaram à unidade em condição de vulnerabilidade e abandono, conforme o MP.
A invasão de mais de 20 mil garimpeiros na terra indígena, com a conivência e estímulo do governo Jair Bolsonaro (PL), e a desassistência em saúde nos últimos anos levaram a uma crise humanitária no território, com explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome -desnutrição grave, diarreia aguda, infecções respiratórias.
Em 20 de janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declarou estado de emergência em saúde na terra indígena. Em fevereiro, a gestão deu início a uma operação para retirada dos garimpeiros e destruição de maquinários e aeronaves.
Mesmo com as ações de emergências, os óbitos seguem ocorrendo na terra indígena. Nos dois primeiros meses do ano, foram 42 mortes registradas pelo Ministério da Saúde -outras seis estão sob investigação. Desnutrição, diarreia e pneumonia foram as causas principais.