Foto: Ricardo Oliveira/ CENARIUM

A crise humanitária enfrentada pelos indígenas Yanomami, em Roraima, mostra um retrato de um Brasil paralelo que vai além do que está sendo publicado nos jornais e portais de notícias do País. O desafio não é só vir para Boa Vista em busca de atendimento médico, mas saber se com a saúde restabelecida, como será a volta para a comunidade. Em alguns casos, os que não conseguem voltar, acabam vivendo em situação desumana pelas ruas de Boa Vista.

Ao longo de três dias, a reportagem da Revista Cenarium circulou pelas ruas e rodovias da cidade e percebeu que, além do número considerável de venezuelanos, há também um fluxo de indígenas Yanomami em situação de rua. Em um dos casos, um grupo de seis indígenas vivem em um cenário precário na Avenida Glaycon de Paiva, próximo ao Teatro Municipal de Boa Vista. Abandonados e sobrevivendo com a ajuda de doações de quem passa pelo local.

Foto: Ricardo Oliveira/CENARIUM

Precariedade
Além de viver nas ruas de Boa Vista, há pelo menos quatro meses, os indígenas sofrem com o preconceito. Alguns, inclusive, ameaçam jogar pedras ou objetos em pessoas ou em veículos que estejam passando pelo local, como forma de autodefesa. A maioria que estava naquela localidade aparenta ser menor de idade.

De acordo com um morador próximo ao local e que não quis se identificar, os maiores problemas são a embriaguez de crianças e adolescentes, além da dificuldade na comunicação com os indígenas, uma vez que faltam tradutores para facilitar o processo de entendimento por meio de um diálogo.

Cinco anos após sofrer uma intervenção federal por conta da crise migratória dos venezuelanos, Roraima teve apenas os impactos diminuídos, mas a migração continua. O próprio governador do Estado, Antonio Denarium (Progressistas), disse em entrevista recente que, diariamente, 300 pessoas passam por Pacaraima, cidade brasileira que faz fronteira com a Venezuela, distante a 213 quilômetros da capital.

A situação precária que a capital Boa Vista vive, reflete o abandono das políticas de direitos humanos adotadas pelo Governo Bolsonaro, que tinha como ministra a atual senadora pelo Distrito Federal Damares Alves, e mostra como o País ainda precisa avançar.

O “apagão” das políticas públicas foi resultado de uma matéria da Revista Veja que mostrou, em novembro de 2021, que o Governo Bolsonaro estava há dois anos sem avaliar o cumprimento do que está previsto no Plano Nacional de Direitos Humanos.

Coordenado pelo ministro Silvio Almeida, titular do novo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), um levantamento está sendo feito por uma equipe do ministério que está em Boa Vista apurando as omissões observadas na gestão 2019-2022 do governo federal. De acordo com um relatório preliminar, Bolsonaro e seus ministros estiveram por cinco vezes em Roraima.

Entretanto, em nenhuma dessas missões foram apresentadas tratativas contra o garimpo ilegal, a segurança alimentar do povo indígena que vive naquela região ou qualquer outra ação em defesa dos direitos humanos. E nenhuma visita foi feita ao território Yanomami, mesmo diante de denúncias e recomendações em prol da dignidade humana dos povos originários.

Grupo de Trabalho
Em 2021, o Ministério Público Federal (MPF) criou um grupo de trabalho em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e órgãos estaduais e municipais. O foco de trabalho seria o planejamento de ações sobre a migração indígena Yawari para as ruas de Boa Vista, Caracaraí, Iracema e Mucajaí, em Roraima. Os Yawari são um subgrupo da etnia Yanomami. Na época, o procurador da República, Alisson Marugal informou que o grupo iria orientar os órgãos nas situações concretas, com o foco nas crianças e adolescentes.

“A ideia é discutir os problemas que aconteceram, e que acontecem, para ocasiões futuras. Não é de julgar, nem apontar culpado. Estamos, aqui, para documentar um plano de ação que possa orientar os órgãos nas situações concretas que podem se apresentar, com um foco especial para crianças e adolescentes”, salientou o procurador da República, Alisson Marugal.

Procurado para comentar os resultados das ações desse grupo de trabalho, o Ministério Público Federal não respondeu até a publicação desta reportagem.

Contexto Sociológico
Não é apenas na capital que há registros desses indígenas abandonados, há ainda um outro fator, o das mulheres indígenas que andam com os seus filhos no colo externam ainda uma preocupação. Em alguns casos, houve notícias até de atropelamento, um radar de velocidade foi colocado bem na entrada do ramal [estrada] que dá acesso a Casai para evitar acidentes.

É sempre em um grupo grande. A reportagem flagrou, em diferentes horas do dia, dezenas de indígenas Yanomami e de outras etnias andando a pé pela rodovia BR-174.

Sobre a situação de rua vivida pelos indígenas, o professor de antropologia da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Alexandro M. Namem ressalta a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para essa parte da população.

“É preciso uma abordagem multidisciplinar com médicos, serviço social, antropólogos e, principalmente, com tradutores bilíngues ou poliglotas, pois é muito difícil, em algumas situações, você se comunicar por meio do português com pessoas que são de outras civilizações, como no caso dos indígenas”, pontua Alexandro.

Ele salienta, ainda, o cuidado, a existência do diálogo e do acolhimento quanto à retirada dos indígenas em situação de rua. “Esse cuidado deve ser tomado, não podemos tirá-los da rua à força. Tem que haver uma conversa para ver se eles têm a intenção de ser acolhidos em alguma instituição que esteja apta para recebê-los e proporcionar o que eles desejam, uma vez que o País é pluriétnico e deveria, inclusive, ser reconhecido como um País plurinacional” , analisa.

O professor de antropologia destaca que a prática política equivocada do Estado pode acarretar grandes impactos. “O ponto importante que precisamos enfatizar é que uma vez que o Estado se omite e pratica política equivocada, anti-indígena, ele causa impactos muito mais amplos do que se possa imaginar. Essas populações, que são diferenciadas de nós, têm formas diferentes de ver o ser humano e quando você impacta, negativamente, uma população que é diferenciada, isso incide sobre a ontologia, mitologia e cosmologia“, explica o professor.

 

Crise Humanitária
Os indígenas Yanomami passam, atualmente, uma crise humanitária sem precedentes por conta da invasão do garimpo ilegal. Estima-se que são 20 mil garimpeiros dentro da maior reserva indígena do Brasil, com mais de 9,6 milhões de hectares de floresta. Os Yanomami estão vendo o seu território sendo destruído e crianças e bebês são os que mais sofrerem com os impactos da atividade mineral na região.

O Ministério dos Povos Indígenas informou que 570 Yanomami, entre 2019 e 2022, morreram por contaminação por mercúrio, desnutrição e fome, por conta do impacto das atividades de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.

O Ministério da Saúde decretou estado de emergência para combater a falta de assistência sanitária que atinge os Yanomami. Por meio de um Centro de Operações de Emergências (COE), o ministério “planeja, organiza, coordena e controla as medidas a serem empregadas”.

As ações estão se dando em conjunto com gestores estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS). O grupo ligado à emergência deverá propor ao ministério “o acionamento de equipes de saúde, incluindo a contratação temporária de profissionais” e “aquisição de bens e contratação de serviços necessários para a atuação” na emergência.

Migração Venezuelana
Com o agravamento da crise econômica e social na Venezuela, o fluxo de cidadãos venezuelanos para o Brasil cresceu, maciçamente, nos últimos anos. Entre 2015 e maio de 2019, o Brasil registrou mais de 178 mil solicitações de refúgio e de residência temporária, segundo informações do site da Unicef Brasil. A maioria dos migrantes entra no País pela fronteira Norte do Brasil, no Estado de Roraima, e se concentra nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, capital do Estado.

Para acolher parte dessa população, 11 abrigos oficiais foram criados em Boa Vista e dois em Pacaraima. Eles são administrados pelas Forças Armadas e pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Mais de 6,3 mil pessoas, das quais 2,5 mil são crianças e adolescentes, vivem nos locais.

Estima-se que quase 32 mil venezuelanos morrem em Boa Vista. Projeções das autoridades locais e agências humanitárias apontam que 1,5 mil venezuelanos estão em situação de rua na capital, dentre eles, quase 500 têm menos de 18 anos.

 

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