No último dia 30, o ainda presidente diplomado Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu com o líder kayapó Raoni, a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) e lideranças indígenas do Vale do Javari no hotel Meliá, em Brasília. Conversaram sobre a decisão de Joênia de aceitar o convite para se tornar a primeira indígena presidente da Funai, agora denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
Na conversa, segundo duas pessoas presentes ouvidas pela Agência Pública, Raoni falou a Lula sobre o “erro” da construção da usina hidrelétrica Belo Monte, no Pará, e lembrou que o presidente “não ouviu”, na época, as denúncias que ele e o movimento indígena fizeram contra a obra desde que o projeto, arquivado pela ditadura militar, foi retomado pelo governo do PT em meados dos anos 2000. Agora os peixes sumiram, o rio secou e os indígenas do rio Xingu sofrem, conforme havia advertido Raoni.
O tom da conversa não impediu que Lula, ao final, aceitasse uma sugestão dos próprios indígenas e convidasse o líder kayapó para participar da passagem da faixa presidencial no Palácio do Planalto, dois dias depois, no que se tornou um dos momentos mais democráticos e emocionantes da posse do presidente. Ao contrário do ex-presidente Jair Bolsonaro, Lula novamente mostrou que não faz política com o fígado.
Na manhã do último dia 2, os servidores da Funai fizeram um ato de “retomada” do órgão indigenista, dizendo-se aliviados depois de quatro anos de perseguições e opressões do regime bolsonarista. Joênia contou aos servidores outro pedaço da conversa com Lula. Ela disse ter falado ao presidente que “estava aceitando o convite mas não quero interferência política [na Funai], ponto número um, eu quero total autonomia para os povos indígenas”. “Porque questões indígenas”, disse Joênia, “têm que ser voltadas para os povos indígenas”. Joênia contou que vai buscar “um trabalho responsável para depois [alguém] não dizer, ‘ah, a Funai não deu certo por conta da Joênia’”.
Joênia disse que Lula imediatamente concordou com sua “condição”, o que a deixou “bastante aliviada”. Ela também citou o baixo orçamento da Funai para este ano. Lula a confortou dizendo: “‘a gente vai ter como fortalecer’”. Além disso, como parte do processo de transição de governos, recursos destinados à proteção socioambiental foram retirados do cálculo do teto de gastos, o que permitirá novas parcerias e investimentos de países e organizações internacionais.
No mesmo encontro com os servidores, a ministra do pioneiro Ministério dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara (PSOL-SP) lembrou que o anúncio sobre um novo ministério indígena foi feito por Lula no ano passado no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Ela disse que, na época, falou a Lula que os indígenas queriam participar do futuro governo do petista, mas não tratou da criação de um novo ministério, uma ideia que, segundo ela, partiu do próprio então pré-candidato. “Ele me olhou e disse que ‘eu tive uma ideia, eu vou fazer um ministério dos povos indígenas’. Daí [fiquei cobrando] ‘e o ministério? E o ministério?`’”.
Sonia disse que, em conversas ao longo do último ano, Lula repetiu a ela e a Joênia que “não estou brincando de garantir [seus direitos], de proteger vocês, eu estou falando sério”. “Do que ele [Lula] está falando, a gente acredita”, disse Sonia, “que ele está realmente, agora, com essa vontade de fazer a reparação do governo anterior, que ele não fez. Vamos ver se agora a gente consegue de fato, né, implementar, efetivar esse respeito aos nossos modos de vida, à proteção dos nossos territórios”.
Uma relação dinâmica
As conversas das lideranças indígenas com Lula mostram como é rica e dinâmica a relação entre o movimento indígena e o partido que venceu as eleições em 2022. Longe de representar uma adesão unilateral, a entrada dos indígenas no governo é permeada de cobranças e dúvidas. Foi assim ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010) e da gestão de Dilma Rousseff (2011-2016).
Agora, porém, com o ministério e a Funai sob comando de indígenas, abre-se toda uma nova conjuntura e se desdobra uma nova perspectiva. Ao sair do ato de posse da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no último dia 4 no Palácio do Planalto, o ex-presidente da Funai e cofundador do ISA (Instituto Socioambiental), Márcio Santilli, descreveu à Pública que “nesse momento é menos correto falar política indigenista, agora é política indígena”. Pela primeira vez na história.
Meio século depois da chegada dos portugueses às terras indígenas que depois seriam chamadas de Brasil, pela primeira vez a condução das políticas nacionais do governo central estará nas mãos dos indígenas. Sonia e Joênia, que deverá deixar o Congresso no início de fevereiro, assumirão, respectivamente, o novo ministério e a presidência da Funai. A posse de Sonia deve ocorrer no próximo dia 10 no Palácio do Planalto. Numa terceira frente, outro líder indígena, o advogado Weibe Tapeba, do Ceará, assumiu a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde.