O ano de 2023 marca o início do novo governo eleito. Como é sabido, a nova gestão deverá enfrentar o desafio da “reconstrução” do país, especialmente após quatro anos de desmonte das estruturas políticas, administrativas, normativas e fiscalizatórias protetivas do tecido social, em diversos seguimentos, entre 2019 e 2022.
Poderíamos mencionar exemplos distintos e diversos, iniciando-se pelos mais básicos direitos sociais, econômicos e culturais sistematicamente negados à população brasileira, histórica e estruturalmente a ela inacessíveis, como a educação sucateada ou, ainda, o direito à saúde e às vacinas (portanto, à própria vida), diante de uma pandemia letal e que levou o país a cerca de 690.074 vítimas.
Vida, saúde, educação, segurança, cultura etc. constituem direitos humanos fundamentais cuja negação por um governo a qualquer cidadão, por si só, já seria suficientemente grave. Porém quando consideradas populações e culturas historicamente inviabilizadas e vulnerabilizadas, a omissão pode resultar em dinâmicas etnocidas e típicas do biopoder pelo qual a calculada otimização da vida humana estabelece o momento em que se deve viver e morrer, tal como proposto por Michael Foucault.
Referidas ideias projetam em parte a tragédia que se abateu em 1500 sobre mais de seiscentas nações indígenas, com cerca de 5 milhões de indivíduos, segundo Mércio Pereira Gomes (O Caminho Brasileiro Para a Cidadania Indígena. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi [Org.]. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p.420-445, p. 420).
Escravizados, discriminados, espoliados e exterminados, jamais no Brasil tiveram participação ativa na formulação de políticas públicas indigenistas.
Assim, a criação de um Grupo Técnico de trabalho sobre questões indígenas especialmente voltado à colaboração para a transição ao novo governo que se inicia em 2023, composto em sua maioria exatamente por representantes de distintas culturas originárias do Brasil, representa marco sem precedentes na história brasileira.
Da escravização e do extermínio, passando pelo regime de tutela e assimilacionista, chegando ao reconhecimento apenas formal pela Constituição Federal de 1988, até a opressão, violência e invasões de terras indígenas tradicionais, ações que se tornaram política de Estado do governo de Jair Bolsonaro, jamais existiu em terras brasileiras um Ministério dos Povos Indígenas. Assim, há que se reconhecer a concretização de verdadeiro marco político na história brasileira rumo à construção de uma sociedade, de fato, multicultural, tal como propõe a referida Carta Fundamental de 1988.
Importante lembrar que as tentativas de participação política organizada de representantes indígenas nas instâncias institucionais brasileiras não são recentes. Contudo, são pontuais e insuficientes se consideradas as cerca de 419 distintas culturas ancestrais presentes no Brasil e que resistem ao genocídio.
Mario Dzuruna Butsé (1942-2002) – ou Mário Juruna – conhecido representante do povo xavante, foi o primeiro deputado federal indígena da história brasileira e que exerceu seu mandato em defesa da demarcação das terras indígenas, entre 1983 e 1987. Posteriormente, somente em 2018 foi eleita a primeira mulher indígena como deputada federal, Joênia Wapichana. Com o resultado das eleições gerais de 2022, embora não reeleita, duas novas representantes foram eleitas: Célia Xakriabá, por Minas Gerais, e Sônia Guajajara, por São Paulo.
Ainda que o Brasil esteja muito distante do ideal em termos de mulheres ocupando seus espaços nos Parlamentos em todas as esferas federativas, as eleições das duas deputadas indígenas possuem claro e importante significado: que já passamos da hora dos povos originários do Brasil ocuparem as posições que lhes cabem enquanto protagonistas na formulação das políticas públicas indigenistas, dentre todas as outras.
Como dito, a criação de um grupo de trabalho para auxiliar na transição para o novo governo no que concerne às temáticas indígenas e aos desafios que se impõem – que não são poucos, menos ainda de simples resolução – representa relevante acerto da equipe do presidente da República eleito e que deverá inserir o país em patamar civilizacional e democrático superior.
Nomes como Álvaro de Azevedo Gonzaga Guarani Kayowá, Tapi Yawalapiti, Benki Ashaninka, Davi Kopenawa Yanomami, Eloy Terena, a deputada Juliana Cardoso, Sonia Guajajara, dentre outras/os representantes de relevo na defesa dos povos indígenas do Brasil, garantem a legitimidade pela primeira vez presente na transição de um governo federal.
A criação de um Ministério dos Povos Indígenas, fato político também sem qualquer precedente em nossa história marcada pelo extermínio de cerca de 5 milhões de indivíduos pertencentes às culturas originárias, desde a invasão dos portugueses às atuais terras brasileiras, com a escolha de uma ministra indígena, representa uma clara guinada na execução das políticas indigenistas no Brasil.
Não bastaram o abandono da visão assimilacionista e o reconhecimento da multiculturalidade como eixo central na formulação de políticas públicas. Necessário é, ainda, o enriquecimento das instâncias representativas do país com a diversidade. Somente com mulheres pretas, pardas e indígenas nas instâncias do Poder, poder-se-á pensar um Brasil justo e democrático.
O Grupo Técnico de trabalho já identificou alguns dos principais desafios para o novo governo, a partir de janeiro de 2023, dentre os quais o enfrentamento da redução do orçamento para a saúde indígena em torno de 60%, o que conduziu ao sucateamento das estruturas de atendimento, como a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena, responsável pela concepção e coordenação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena – SasiSUS – do Sistema Único de Saúde – SUS).
A questão fundamental acerca dos direitos indígenas e condição básica para a sobrevivência das culturas originárias no país é, contudo, a garantia de demarcação, homologação e registro das Terras Indígenas tradicionais, vale dizer, enquanto definição constitucional (artigo 231 da CF/88), as terras indígenas preexistentes ao próprio Estado brasileiro, apenas assim reconhecidas pelo processo administrativo de demarcação, o que deve ser efetivado pelo Poder Executivo após uma série de atos previamente definidos em lei.
É dever da União demarcar as terras e territórios tradicionais indígenas. A via operacional para tanto se dá por meio do acima referido processo de demarcação, disciplinado pela Lei nº 6.001, de 19/12/1973 e pelo Decreto nº 1.775, de 08/01/1996.
Conforme identificado pelo Grupo Técnico de trabalho, que deverá apresentar seu relatório final até 11 de dezembro de 2022, treze terras indígenas apenas aguardam a sua demarcação e homologação, uma vez que não possuam qualquer pendência ou entrave de ordem burocrático-administrativa para tanto.
Tal constatação não significa que mais demarcações não serão realizadas. Segundo afirma o Grupo Técnico, em torno de 63% dos procedimentos demarcatórios estão paralisados. No Brasil, 443 Terras Indígenas estão demarcadas e 237 se encontram sob análise.
Tal contexto é intimamente relacionado a outros, como a necessidade de que o novo governo desenvolva efetivo combate aos crimes cometidos em Terras Indígenas, como invasões, garimpo e pesca ilegais, enfrentamento do crime organizado e dos arrendamentos de TIs vedados pela Constituição, entre outros.
No âmbito normativo, a imediata revogação de todos os decretos anti-indígenas firmados entre 2019 e 2022 é premente. Nesse contexto, chamamos a atenção para a necessidade de arquivamento de toda e qualquer proposta inspirada pela estapafúrdia e inconstitucional ideia de adoção do chamado “marco temporal”, também objeto de discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
De outro lado, a questão ambiental é também urgente e intimamente conectada às temáticas indígenas. A busca do atual governo por flexibilizar os procedimentos de licenciamento ambiental representa risco efetivo de destruição das culturas indígenas, uma vez que têm por alvo suas terras tradicionais, cobiçadas por mineradoras, pelo garimpo e por fazendeiros inescrupulosos, verdadeiros criminosos. Sem as culturas indígenas, não existirão biomas e o ecossistema colapsará.
Finalmente, a composição orgânica do Ministério dos Povos Indígenas (a que alguns denominam como o futuro Ministério dos Povos Originários) é de suma importância para que essa conquista, que já vem com grande atraso em nossa história, se mostre bem sucedida e útil a todas as nações indígenas que vivem no Brasil.
As terras indígenas estão sob ataques sistemáticos e constantes. Os clubes de tiro se multiplicaram em áreas de conflito na Amazônia e na região do Xingu, acompanhando a rota do agronegócio nas rodovias federais.
O novo governo não encontrará facilidades no que tange à efetivação dos direitos humanos fundamentais dos povos indígenas do Brasil. Contudo, o importante trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Grupo Técnico incumbido de apresentar ao presidente Lula seu relatório com mapeamentos e sugestões, já demonstra que o protagonismo pelos povos originários nos mencionados processos de transição para o novo governo constitui um divisor de águas e traz esperanças de que um novo Brasil surja, fazendo ressaltar o caráter solidário de seu povo, marcado pela alteridade e pela postura efetivamente antirracista, imperativo moral de cada cidadã e cidadão brasileiros.
Aline Ngrenhtabare Kaxiriana Lopes Kayapó, pertencente ao povo indígena Mebengokré, Aymara-Peru e Tupinambá da Terra Indígena Uruitá. Mãe do Yupanki Bepriabati, escritora, ilustradora, ceramista, artista plástica, pesquisadora indígena, empreendedora da marca ORIGINÁRIA, ativista no movimento indígena nacional, membra fundadora do Movimento Plurinacional Wayrakuna, movimento de indígenas mulheres, membra do conselho editorial da GRUMIN, graduanda em Direito pela UNIFTC, membra do Parlamento Indígena do Brasil, integra a comissão de direitos humanos da OAB/SP – Núcleo de direitos indígenas e quilombolas e a Comissão de Justiça Restaurativa-OAB/SP. Atualmente está como vice-presidenta da união plurinacional dos estudantes indígenas.
Edson Kayapó, pertencente ao povo Mebengokré, membro do Parlamento Indígena do Brasil, doutor em História da Educação e professor no IFBA e no PPGER/UFSB e Curador Adjunto para Arte Indígena do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Compõe atualmente o grupo técnico de trabalho para ciência e tecnologia de transição para o novo governo e o Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.
Flávio de Leão Bastos Pereira possui pós-doutorado em Direitos Humanos, é advogado da causa indígena na esfera internacional, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e vem assessorando o grupo técnico dos povos indígenas para transição ao novo governo. Coordena o Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, é professor convidado da Universidade Tecnológica de Nuremberg Georg Simon Ohm (2020-2022) e especialista em Direitos Humanos e Genocídios pelo Zoryan Institute e University of Toronto.