Foto: PMS/Arquivo

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação para que a Justiça Federal determine que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Distrito Especial de Saúde Indígena Potiguara (Dsei) iniciem atendimento de saúde às famílias indígenas venezuelanas da etnia Warao refugiadas na Paraíba. O pedido, realizado na última terça-feira (6), ocorre após a morte de 10 refugiados, sendo sete deles crianças.

De acordo com o MPF, desde que chegaram à Paraíba, entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, os indígenas venezuelanos só receberam assistência em saúde básica na rede de atenção municipal dos municípios de João Pessoa e Campina Grande.

“Em reunião com o MPF, em fevereiro de 2020, a Secretaria de Saúde de João Pessoa já ressaltava a necessidade de uma atuação conjunta para melhorar o estado de saúde dos indígenas, mencionando que corriam risco de morte. Em resposta ao MPF, a respeito do atendimento aos indígenas venezuelanos, o Dsei Potiguara alegou limitações legais e reduzida estrutura de pessoal, material e física para prestar suporte em atendimento específico aos Warao”, denuncia o MPF.

Os primeiros óbitos no grupo de aproximadamente 300 indígenas Warao refugiados em João Pessoa aconteceram em outubro de 2020. Um bebê não resistiu à cesárea da mãe, diagnosticada com infecção grave. Dias depois, uma adolescente de 16 anos morreu vítima de tuberculose. Em dezembro do mesmo ano, a mãe dela, de 53 anos, morreu com a mesma doença, sem sequer ter obtido leito médico para tratamento. Desde então, ocorreram pelo menos mais sete mortes, todas causadas por doenças similares, como pneumonia e sepse (infecção generalizada).

“Em março de 2021, faleceu no Ceará, vítima de sepse, uma menina Warao de apenas 10 meses de vida, poucos dias depois de deixar um abrigo em João Pessoa. Em abril de 2021, faleceram dois bebês gêmeos que nasceram prematuros, em fevereiro do mesmo ano, e foram diagnosticados com sepse. Em maio de 2021, uma jovem indígena grávida de oito meses faleceu cinco dias após uma cesárea de emergência. Em julho de 2021, uma bebê faleceu após ter tido febre durante uma madrugada. Em março de 2022, outra bebê Warao faleceu diagnosticada com pneumonia, sepse e insuficiência renal”, elenca o MPF.

Mortes ignoradas

Na petição, o Ministério Público Federal aponta a evidência mais nítida da ineficácia da prestação de saúde fornecida aos indígenas refugiados. O órgão destaca que as mortes aconteceram por doenças que são contornáveis, se houver a assistência em saúde em tempo hábil.

Para o MPF, é latente a desproteção a essa etnia pelo poder público, “principalmente, pelos próprios órgãos de proteção indígenas, que vêm ignorando esse número de mortes e deixando cada vez mais vulnerável essa população que já possui um evidente histórico de muita dor e sofrimento, desde a saída da Venezuela”, frisa a petição.

O órgão aponta, ainda, que a incidência de doenças respiratórias, principalmente nas crianças indígenas refugiadas, é muito recorrente, “o que os colocou sob um risco ainda maior em meio à pandemia da Covid-19, somado ao contexto de deslocamento em que eles vivem, bem como ao modo de vida coletivo”.

O MPF pontua também que a Constituição Federal brasileira prevê o tratamento isonômico entre brasileiros e estrangeiros residentes no país. Portanto, como refugiados, os Warao devem ser recebidos no Brasil “na sua qualidade de povo indígena, sendo titulares dos mesmos direitos dos indígenas brasileiros”. Assim, conforme o artigo 5º da Constituição Federal, os Warao “possuem a garantia constitucional reconhecida de ter acesso a um sistema de saúde diferenciado, que respeite suas particularidades culturais e lhes assegure a integridade e, por fim, a vida”.

Risco de extermínio da etnia

Ao demonstrar a urgência do pedido liminar, o MPF alerta sobre o perigo de mais mortes entre os indígenas refugiados se houver demora na contratação de equipe multidisciplinar de saúde indígena pelo Dsei Potiguara para atender aos Warao. “A demora condenará esse povo, que já se encontra em considerável vulnerabilidade social, a mais adoecimentos e mais mortes, até a concessão da tutela definitiva”, argumenta o órgão.

O procurador da República José Godoy Bezerra de Souza considera que o Estado brasileiro precisa urgentemente atentar para as condições de saúde dos indígenas Warao que chegaram refugiados ao país. Ele explicou a dimensão do alto número de óbitos ocorridos dentro do grupo de 300 indígenas em João Pessoa.

“A quantidade de mortes de criança por indivíduos é extremamente maior do que ocorre na média de mortes do povo brasileiro. Se essas condições se perpetuarem, poderemos ter o extermínio desse grupo de refugiados” afirmou. O procurador também mencionou que as condições de vida insalubre em nossas cidades aumentam a vulnerabilidade da saúde dos Warao. “Isso é algo preocupante e está sendo observado por autoridades nacionais e internacionais”, salientou.

Obstáculos no atendimento

A limitação da assistência em saúde aos indígenas refugiados feita pela rede de atenção básica dos municípios decorre da ausência de formação das equipes do SUS em geral, que não passam pelo treinamento diferenciado que as equipes do subsistema de saúde indígena recebem. Outra limitação decorre do obstáculo linguístico, frequentemente mencionado pelas equipes de saúde do município de João Pessoa, no atendimento aos indígenas – que se comunicam na língua Warao e apenas alguns conseguem dialogar em espanhol, pouquíssimos em português. A situação é agravada pelo fato de não existir muitos agentes de assistência básica que falam espanhol, aptos para lidar com os refugiados. “Se torna latente a necessidade de construção de vínculos entre as equipes de saúde e os grupos indígenas, para que eles ouçam os que buscam ajudá-los”, expõe o MPF.

Além desses entraves, ainda existem particularidades culturais dos indígenas, que entendem, por exemplo, que a cura das doenças deve vir dos curandeiros Warao. “Os indígenas Warao possuem um sistema xamânico próprio, em que os curandeiros detêm grande importância para o grupo. Nas ocasiões de adoecimentos e nascimentos, eles são os primeiros a serem consultados e, com muita frequência, as equipes de saúde ocidentais somente têm acesso aos pacientes depois de sua autorização”, relata o MPF.

O Ministério Público relata na ação que a fragilidade na saúde dos Warao ao chegarem à Paraíba se deu, em grande parte, pelo deslocamento, quase sempre em situações precárias e sem as devidas condições de higiene e alimentação. Para garantir a sobrevivência, ainda na Venezuela, os Warao desenvolveram a prática de pedir doações nas ruas das cidades para onde migraram, por remoção forçada, em decorrência dos vários impactos negativos causados por empreendimentos do setor petroleiro na fauna e na flora da região em que originalmente habitavam.

Outra característica dos Warao é a presença recorrente das crianças indígenas em todas as atividades desenvolvidas pelos adultos, nelas incluídas as atividades praticadas na rua, como a mendicância. Esse aspecto da cultura Warao foi alvo frequente de denúncias da sociedade civil e de averiguações do conselho tutelar em João Pessoa, cidade onde os indígenas venezuelanos aportaram fugindo da crise humanitária em seu país.

Os deslocamentos dos grupos Warao também influenciam no atendimento à saúde, observa o MPF, porque a assistência em saúde básica prestada pela rede municipal se organiza pelo princípio da territorialidade, onde cada equipe de saúde atende numa região preestabelecida. Desse modo, por exemplo, a população residente em determinado bairro só pode ser atendida pela rede do distrito sanitário daquele bairro.

Em se tratando dos indígenas, argumenta o Ministério Público: “A assistência em saúde com essa forma de organização resta essencialmente prejudicada, uma vez que a grande perambulação do grupo nos entornos da cidade, sem, muitas vezes, haver uma residência fixa, dificulta que um Distrito Sanitário – composto por uma rede de USFs – lhes preste atendimento adequado e contínuo, fazendo-se necessário o atendimento por meio da rede federal dos DSEIs”, reitera o órgão.

O MPF também pede na Justiça que a União contrate, em 60 dias, equipe multidisciplinar de saúde indígena para atender aos refugiados Warao, através de aditivo ao Convênio nº 882491/2019, que o Ministério da Saúde/Sesai firmou com o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Filgueira (Imip), o qual tem sido aditivado sucessivamente. O órgão ministerial ainda pede fixação de multa diária à União, no valor de R$ 50 mil, em caso de descumprimento da decisão judicial.

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