Fronteira do Brasil com a Venezuela, em Roraima. Foto: Arquivo/Roraima 1

A Venezuela foi o país que teve a inflação mais alta do mundo em anos recentes, com índices de desemprego e pobreza elevados. O cenário ainda é de penúria para a maior parte da população, que enfrenta carências básicas. Mas há pessoas que, com sorte e um dinheiro na mão, podem ganhar um carro ou uma moto em poucas horas. Isso graças a um dos diversos cassinos abertos na capital do país governado pelo Partido Socialista Unido da Venezuela, o PSUV.

A jogatina legalizada em cerca de 30 estabelecimentos em Caracas há um ano é um dos sinais de um choque de capitalismo silencioso promovido pelo governo de Nicolás Maduro, no poder desde 2013. Com a chegada de mais recursos com a venda de petróleo e gás — a preços turbinados pela guerra na Ucrânia —, uma dolarização informal, com muitas das transações feitas na moeda americana, e a melhora do ambiente de negócios o país parou de piorar, segundo especialistas, estudiosos e venezuelanos.

Lojas de alto luxo, com automóveis, roupas e sapatos de grifes como Ferrari, Hermés e Pronovias, estão voltando a ficar mais movimentadas, em parte pelo retorno a Caracas da ainda pequena parcela de venezuelanos de alta renda, que agora gastam seu dinheiro não apenas com os produtos que haviam sumido dos supermercados. Outdoors comerciais dividem os céus de Caracas com fotos de Hugo Chávez, antecessor de Maduro, que governou por três mandatos de 1999 até sua morte, em 2013.

Há recuperação em indicadores econômicos, como inflação e PIB, em meio à piora da distribuição de renda. Em julho, a inflação do país, de 7,5%, se assemelhou ao patamar argentino, que foi de 7,4% no mesmo mês. Cenário muito diferente do de 2018, quando a inflação superou 130.000%, segundo o Banco Central venezuelano, dado contestado naquele ano pela Assembleia Nacional, que tinha maioria opositora e apontou um percentual bem maior, de quase 1.700.000%.

A vida de Edwin Montilva, de 51 anos, morador da periferia de Caracas que vive com sua mãe e cria três netas da filha que já morreu, não é fácil. O dinheiro que ganha prestando serviço de mototáxi e fotógrafo é curto. A diferença é que, agora, ele consegue produtos essenciais nas prateleiras dos supermercados, especialmente comida e artigos de higiene, como sabonete e papel higiênico. Durante a escassez, que chegou ao auge há cerca de cinco anos, nem com dinheiro se conseguia alguns produtos. Mas ainda há muitas dificuldades:

“A farinha para fazer a arepa pode variar de um a três dólares. Apesar do acesso, os produtos são caros. A economia melhorou um pouco, mas ainda não dá para comprar uma casa, um automóvel e até mesmo roupas. O dinheiro só dá para comprar comida”, diz.

Mesmo em uma situação um pouco mais confortável, a antropóloga Aimee Zambrano, de 43 anos, confirma a volta dos produtos às prateleiras de Caracas, mas diz que muitos produtos continuam inacessíveis. Ela teve que buscar alternativas a arroz, açúcar, azeite e outros itens e ficar horas em filas. Hoje tem tudo, a preços proibitivos.

“De 2015 a 2017, principalmente, havia produtos que não conseguíamos. Tínhamos que entrar em filas. Tive que fazer um estoque de fraldas quando fiquei grávida. O problema é que hoje tem, mas está tudo muito caro. Um quilo de carne custa entre quatro e cinco dólares. Ninguém consegue comprar”, relata ela.

Negociações com os EUA

Com a ainda tateante reaproximação com o governo de Joe Biden e a expectativa do fim das sanções econômicas americanas, em especial a suspensão da venda de petróleo para os Estados Unidos, que era o maior comprador do combustível venezuelano até o embargo imposto em 2019 por Donald Trump, os investidores estrangeiros também começam a voltar. Por enquanto, há um aumento das exportações petrolíferas para a Europa, depois que os EUA liberaram companhias como a espanhola Repsol e a italiana Eni das chamadas sanções secundárias.

Com mais recursos do petróleo, a dolarização informal e estímulos para empresários privados, o governo de Maduro deu sinais de sua intenção de enterrar o “socialismo do século XXI” anunciado por Chávez, que estatizou dezenas de empresas. Mesmo que sua reeleição em 2018 não tenha sido reconhecida por dezenas de países, incluindo o Brasil, Maduro manteve o apoio de nações como Rússia e China.

Se o PIB venezuelano desabou 19,6% em 2018, com nova queda de 35% em 2019 e mais um tombo de 30% em 2020 — o país perdeu dois terços de sua riqueza entre 2014 e 2019, segundo cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI) —, agora a Venezuela começa a a ensaiar uma recuperação. O FMI estimava, em abril, um crescimento de 1,5% neste ano, mas este número poderá ser revisto em outubro.

Crescimento desigual

Nesta semana, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) indicou que espera uma alta de 10% no PIB em 2022. Para o analista financeiro Henkel García, diretor da consultoria Albusdata, a economia venezuelana deve crescer 15% em 2022. Mas os patamares mais elevados, alerta, partem de uma base muito deteriorada.

“A pobreza tem diminuído, mas a desigualdade nem tanto. A recuperação econômica tem sido bastante desigual”, diz García.

Carlos Mussi, representante da Cepal no Brasil, diz que a economia venezuelana emerge do fundo do poço e o uso do dólar como referência ajuda.

“Mas é como uma economia pós-guerra”, ressalta Mussi.

A instabilidade ainda é grande, e na semana passada o dólar disparou, com o bolívar perdendo um quinto do seu valor. Um estudo da consultoria Anova Policy Research, de Caracas, mostra que a maior disponibilidade de bens cria a percepção de recuperação. No entanto, apenas 53,8% das pessoas com idade entre 15 e 64 anos trabalham, a menor taxa da América Latina. A remuneração média no comércio e nos serviços é de US$ 116 por mês e 2,2 milhões de trabalhadores do setor público recebem US$ 17,9 por mês.

Benigno Alarcón, cientista político venezuelano, destaca que os setores que mais têm se desenvolvido são os de alimentos e o farmacêutico. Segundo ele, com mais dinheiro, as pessoas passaram a comprar mais comida e remédios, mas sem mudanças estruturais:

“Não vejo perspectivas de mudanças antes de 2024 [quando haverá novas eleições presidenciais]”.

Ronald Balza Guanipa, decano da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais da Universidade Católica Andrés Bello, diz que de fato aumentaram as atividades comerciais, shows internacionais acontecem por todo o país e marcas estão voltando. Porém, ele critica a falta de transparência das contas oficiais, que não mostram, por exemplo, quanto entra de investimentos e se estes são públicos ou privados.

“O balanço de pagamentos não é divulgado desde o primeiro trimestre de 2019 , assim como as pesquisas domiciliares, onde você pode ver, entre outras coisas, o emprego e a remuneração dos trabalhadores”, afirma.

O GLOBO procurou o Ministério de Informação e Comunicação do governo de Maduro, que não quis se manifestar. María Teresa Belandria, embaixadora em Brasília nomeada pelo opositor Juan Guaidó, afirma que a alta do petróleo não tem reflexo direto na economia venezuelana.

“Se ainda tem tanta gente saindo da Venezuela, é porque a situação não melhorou, certo?” diz ela.

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