O garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami não causa apenas graves impactos à vida dos indígenas, da biodiversidade e do ambiente: o mercúrio utilizado na busca de ouro e lançado sem cuidado nos rios está contaminando os peixes de Roraima, maior fonte de proteína do Estado. Como resultado, não há possibilidade de consumo seguro do pescado dos rios. Crianças e mulheres grávidas têm mais alto risco. A recomendação é que o consumo seja concentrado em espécies herbívoras, menos contaminadas. Ninguém, contudo, está em situação segura.
O alerta está em estudo pioneiro feito por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e Universidade Federal de Roraima (UFRR) e obtido com exclusividade pelo Valor.
O estudo analisou 75 peixes coletados em rios que formam a bacia do Rio Branco. O pescado foi comprado em quatro pontos distintos de desembarque pesqueiro no Estado, mas fora das terras indígenas.
São peixes apreciados pela população de Roraima e que iriam ser vendidos em feiras e mercados. No Uraricoera, um dos afluentes do Rio Branco e o ponto mais próximo à Terra Indígena Yanomami, a cada 10 peixes coletados, seis apresentaram níveis de mercúrio acima dos estipulados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Rio Branco, na altura da capital, dois a cada dez peixes coletados não eram seguros para consumo.
“A ideia deste trabalho foi justamente ampliar o debate para mostrar à sociedade que os malefícios provocados pelo garimpo e pelo uso indiscriminado do mercúrio não afetam apenas os povos tradicionais — indígenas, ribeirinhos e quilombolas”, diz o médico sanitarista
Paulo Basta, pesquisador em saúde pública da Fiocruz. “O mercúrio, despejado indiscriminadamente no leito do rio, pode se difundir e vai afetar o pescado, como nossa análise aponta”, continua.
O mercúrio usado nos garimpos ilegais e lançado no ambiente acumula, ao longo dos anos, no sedimento dos rios. Estima-se que 45% do mercúrio usado em garimpos é despejado em rios e igarapés. Pela ação de bactérias, o mercúrio é convertido em metilmercúrio, composto orgânico de alta toxicidade que entra na cadeia alimentar e afeta os seres que vivem no leito do rio — microalgas, camarões, tracajás, jacarés e peixes. Animais que se alimentam de peixes como ariranhas, porcos-domato e aves também se contaminam.
Estudo de pesquisadores da USP revelou vestígios de mercúrio em andorinhas-azuis, aves migratórias que vêm dos Estados Unidos e Canadá para a Amazônia.
“Quisemos olhar para populações urbanas, que têm dieta diversificada, e não urbanas, onde se incluem indígenas e ribeirinhos”, diz Ana Claudia Vasconcellos, pesquisadora em saúde pública da Fiocruz, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. “O garimpo ilegal gera renda para poucos e compromete a vida de milhares”, diz ela, que trabalha há anos com impacto do mercúrio em comunidades tradicionais da Amazônia.
“Este estudo de avaliação de risco mostra que não importa onde se more, na cidade ou no interior do Estado, o risco de adoecer é importante em todos os grupos — mulheres, crianças, adolescentes. Mesmo que se consuma apenas 50 gramas de peixe por dia, que é baixo consumo, também se está sob risco.” O único grupo que não está ameaçado é o de homens adultos que consomem só 50 gramas de peixe por dia — o que corresponde a dois cortes de sashimi.
A coleta dos peixes foi feita entre 27 de fevereiro e 6 de março de 2021, antes do início do defeso, quando há restrição de espécies para comercialização. Os peixes, comprados diretamente de pescadores, são de 20 espécies mais consumidas em Roraima. Há peixes que se alimentam de outros peixes e outros herbívoros.
“Os valores de contaminação variam bastante. Quanto maior o peixe e mais no topo da cadeia alimentar ele se encontra, maior o nível de concentração de mercúrio observado”, diz Basta.
“O maior nível detectado no estudo foi de 3,15 microgramas de mercúrio para cada grama de tecido muscular de pescado, valor seis vezes superior ao proposto pela Anvisa para venda de pescado”, diz Basta. O limite, segundo informado pela Anvisa, é de 0,5 mg de mercúrio total por quilograma de peixe quando não for predador e 1 mg caso seja predador.
“Esses índices não asseguram que não haverá efeitos deletérios à saúde, só sinalizam que acima dos limites indicados o pescado não pode ser comprado ou vendido, pois pode haver riscos à saúde de quem os consumir”, diz o pesquisador da Fiocruz.
Considerando o parâmetro de 0,5 mg de mercúrio no ponto do baixo Rio Branco 45% das amostras apresentaram níveis acima do limite; no rio Mucajaí, que vem da T.I.Yanomami, foram 53% das amostras; em Boa Vista, 25% e no rio Uraricoera, 57%. “Uma grande quantidade de peixes analisados pela nossa equipe apresentou níveis de mercúrio muito superiores aos limites considerados aceitáveis para o consumo humano”, diz Basta.
“Os peixes vendidos e consumidos em Roraima podem conter níveis de mercúrio até três vezes acima dos limites estabelecidos pela Anvisa”, continua.
O estudo levou em conta padrões da FAO-OMS e da agência ambiental americana, a EPA, mais rigorosa do que a OMS nos limites de ingestão de metilmercúrio (0,1 mg de metilmercúrio por quilo corporal/dia). A FAO e a OMS estabelecem limites por grupos — para mulheres, 0,23 mg de metilmercúrio por quilo corporal/dia, mais que o dobro do considerado seguro pela EPA. Para homens adultos e mulheres fora da idade fértil, trabalham com limite de 0,45 mg de metilmercúrio por quilo/dia.
Os pesquisadores fizeram uma análise de risco baseados nos níveis de contaminação dos peixes, aplicando metodologia da OMS. Dividiram em grupos — homens adultos, mulheres em idade fértil e crianças, fizeram uma estimativa da quantidade média de peixe ingerida diariamente para cada um dos grupos e criaram três cenários.
O primeiro é de baixo consumo (50 gramas de peixe por dia), o segundo, médio consumo (100 gramas, ou um filé pequeno) e consumo elevado (mais de 200 gramas).
“O principal achado do nosso trabalho é que independente do cenário de consumo, se a pessoa mora em centro urbano ou zona rural, se é mulher ou criança, praticamente todos estão sob risco de adoecer devido ao excesso de mercúrio identificado nos peixes”, afirma Basta.
Homens adultos em cenários de baixo consumo são a única exceção na razão de risco do estudo. “Temos grande preocupação com as mulheres, porque engravidam. O cérebro do feto é um alvo muito sensível aos efeitos tóxicos do metilmercúrio”, diz Ana Claudia Vasconcellos.
O estudo menciona que sintomas de contaminação em casos graves, em adultos, podem incluir alucinação, convulsões, dificuldades para caminhar, perda da visão e audição. Alguns sinais se confundem com outras doenças como dor de cabeça, zumbido no ouvido, distúrbios de sono, ansiedade e hipertensão.
“Nas crianças a situação pode ser ainda mais grave”, diz a nota técnica. “Os problemas podem começar quando a criança ainda está na barriga da mãe. Se os níveis de contaminação forem muito elevados, a criança pode morrer durante a gestação. Ao nascer pode apresentarparalisia cerebral, ter deformidades e/ou malformação congênita”, diz o texto.
“Quando a criança é cronicamente exposta ao mercúrio durante a gestação, pode ter problemas em seu desenvolvimento. Quando bebê, pode demorar para se sentar, para engatinhar, para dar os primeiros passos e para falar as primeiras palavras”, diz o estudo. “Pode ter dificuldade de aprendizado na escola. Essas limitações, na maioria das vezes, são irreversíveis e podem gerar perdas cognitivas, perdas na memória e déficits no aprendizado”.
Embora apontem a gravidade do estudo, os pesquisadores indicamque há peixes que podem ser consumidos e que apresentam riscos médio ou baixo, como os não carnívoros (ver quadro acima). “É muito importante, contudo, dizer que os níveis de contaminação não são os mesmos para todos os peixes. Os herbívoros têm nível de contaminação mais baixo e são esses que a mulher grávida pode consumir”, reforça Ana Claudia.
“Pacu e jaraqui podem ser consumidos diariamente por uma gestante e, em tese, o feto não está em situação de risco”, continua. Outro ponto importante é que “a conta não pode parar no pescador, que será prejudicado duplamente na venda e no próprio consumo”, diz o biólogo Ciro Campos, analista socioambiental do ISA e um dos autores do estudo.
“Sou um consumidor de peixe. Moro em Boa Vista, cidade na beira do Rio Branco, um grande rio que é uma potência em termos de peixe”, segue. “Eu, como grande parte da população de Roraima, cresceu comendo peixe do Rio Branco. A lista dos contaminados tem peixes apreciados pela população e que quase não podem mais ser consumidos”, diz. “Os pescadores, que já vivem perto do limite, vão perder ainda mais”.
A pesca nos rios de Roraima gera renda para 6 mil famílias no Estado, que vivem diretamente da atividade. “É a consequência de uma atividade ruim para o ambiente, que acontece lá longe, no garimpo ilegal da Terra Yanomami e nos atinge em todos os municípios”, destaca Campos. A distância do garimpo na T.I. Yanomami de Boa Vista, pelo rio, é de cerca de 300 km. “O garimpo causa muito problema onde acontece, mas não termina ali. Ultrapassa os limites
da T.I. e afeta a vida de pessoas em muitas partes da Amazônia, até porque algumas das espécies de peixes migram”.
“O que posso dizer, é que é prejudicial para a saúde (peixes contaminados por mercúrio). E que é complicado mexer com garimpo, que é atividade ilegal, mas uma necessidade da população de não ter outra alternativa de trabalho”, diz Rafael Pinheiro, presidente da Federação de Pescadores do Estado de Roraima. “Na questão comercial, é péssimo. Vai prejudicar a vida do pescador”, continua.
O Valor procurou vários órgãos públicos estaduais e federais para saber quem faz monitoramento de mercúrio e fiscalização dos peixes. As respostas foram evasivas. A Anvisa informou que o controle e monitoramento do pescado é do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e secretarias de agricultura local. A Secretaria de Aquicultura e Pesca disse “não ter competência para realizar o monitoramento da contaminação de peixes por mercúrio”. A Fundação Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh) informou que monitora a qualidade de rios do Estado, mas com parâmetros que não incluem mercúrio.
A Companhia de Águas e Esgoto de Roraima (Caer) disse que realiza análises semestrais, mas sem informar quais nem os resultados. A Secretaria Estadual de Saúde informou que o tema seria de reponsabilidade da Femarh e da agência agropecuária.
Em junho, o Jornal Nacional, da TV Globo, informou ter tido acesso a um laudo da Polícia Federal que revelou altos índices de contaminação por mercúrio na água da T.I. Yanomâmi. Amostras de água em quatro rios apontaram teores de mercúrio, em média, 8.600% acima do estipulado como limite máximo para águas destinadas ao consumo humano. Para pesca e irrigação, o excesso foi de 860%.
Os brasileiros consomem entre 10 quilos e 12 quilos de peixe ao ano. Na Amazônia, a estimativa dobra, com consumo de 20 kg ao ano por habitante. O Amazonas é o campeão nacional, com média de 30 kg/ano por pessoa, o que significa mais de 80 gramas ao dia.
A doença de Minamata é a contaminação por mercúrio que ficou mundialmente conhecida em 1956. Uma indústria no Japão lançava, há décadas, dejetos contendo mercúrio na baia de Minamata. Mais de 700 morreram. Para evitar maiores danos à saúde da população de Roraima, os pesquisadores recomendam que as atividades ilegais de garimpo nos territórios indígenas do Estado sejam interrompidas imediatamente com a retirada dos invasores das terras da União.
Outra recomendação é um plano de descontinuidade do uso de mercúrio na mineração de ouro e a estruturação de um Plano de Manejo de Risco. Pedem, ainda, que se amplie o monitoramento dos níveis de mercúrio nos peixes em outras áreas da Amazônia e que se esclareça a população sobre consumo seguro. Outra medida é aprimorar a notificação de casos de contaminação crônica por mercúrio, principalmente nas áreas impactadas pelo garimpo ilegal.