O Ministério da Saúde deixou faltar cloroquina para o tratamento de indígenas com malária na Amazônia, mesmo com fornecimento sendo apontado como regular pela principal produtora do medicamento para a pasta, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
O desabastecimento já dura, pelo menos, dois meses. A saída encontrada foi a recomendação de uma associação de medicamentos com efeitos colaterais mais intensos, segundo relatos de pessoas que estão na linha de frente do atendimento aos indígenas, e com restrições de uso por gestantes.
A falta de cloroquina para tratamento de malária ocorre depois de o presidente Jair Bolsonaro (PL) ter colocado em prática o plano de usar o medicamento para o combate à Covid-19.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou ter distribuído em julho aos DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas) “quantitativo suficiente” de cloroquina para tratamento da malária.
“No início de agosto, a pasta iniciou nova entrega a todos os estados e DSEIs. Assim que finalizado o processo logístico, o abastecimento estará completamente normalizado”, disse a pasta.
Estudos científicos não apontam eficácia de cloroquina contra o coronavírus. Mesmo assim, até hoje, Bolsonaro segue defendendo o uso do medicamento.
O governo do presidente mobilizou pelo menos cinco ministérios, as Forças Armadas, uma estatal e a Fiocruz para produzir, distribuir e garantir a aplicação de cloroquina para Covid.
A droga chegou a aldeias indígenas com o propósito de ser utilizada contra o coronavírus.
Reportagem da Folha publicada em maio de 2021 mostrou que, até aquele mês, o Ministério da Saúde já havia distribuído pelo menos 265 mil comprimidos de cloroquina, azitromicina e ivermectina a indígenas em cinco estados: Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia e Mato Grosso.
A distribuição do chamado kit Covid, sem eficácia comprovada contra o coronavírus, se deu no contexto de combate à pandemia. No auge da crise sanitária, o Ministério da Saúde desviou 2 milhões de 3 milhões de comprimidos de cloroquina fabricados pela Fiocruz para o combate à malária.
Também em maio do ano passado, o jornal mostrou que a Aeronáutica omitia o destino de 132 caixas e 5.000 comprimidos de cloroquina transportados em missões oficiais.
Pelo menos um transporte, de 1.500 comprimidos, foi feito pela FAB à região amazônica da Cabeça do Cachorro, no Amazonas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, em junho de 2020. Ali estão 23 etnias indígenas, como yanomami, wanano e baniwa.
Outra missão envolveu um avião da FAB, em Roraima. Lotes de cloroquina foram distribuídos a distritos sanitários que cuidam dos yanomami.
Agora, dois anos depois, passou a haver desabastecimento de cloroquina para o tratamento da malária.
Agentes que cuidam do atendimento a indígenas em comunidades do rio Negro, na Cabeça do Cachorro, relatam que estoques estão zerados, que postos fazem uso das últimas unidades e que há uma preocupação com a continuidade do problema, especialmente em relação às gestantes.
Uma nota técnica do Ministério da Saúde, assinada em 15 de junho de 2022, reconheceu a existência do “desabastecimento de cloroquina”. A nota foi elaborada para apresentar alternativas ao tratamento da malária causada pelo parasita Plasmodium vivax, transmitido pela picada da fêmea de um mosquito, diante da falta no estoque.
A existência da nota foi revelada em reportagem publicada pelo portal Amazônia Real, em 21 de julho.
Com cloroquina, o tratamento dura três dias. Caso a malária volte a se manifestar após 60 dias, o tratamento deve incluir artemeter/lumefantrina ou artesunato/mefloquina durante três dias, mais primaquina, cita a nota técnica. “Gestantes com malária por P. vivax devem usar apenas a cloroquina”, afirma o documento.
“Devido ao atraso na produção e distribuição de cloroquina, enfrentamos desabastecimento temporário deste medicamento em alguns locais”, dizem os técnicos do ministério.
As combinações de medicamentos poderão substituir a cloroquina “em municípios e Distritos Sanitários Especiais Indígenas com desabastecimento de cloroquina e apenas enquanto não estiver regularizado o estoque deste medicamento”.
Em nota, a Fiocruz afirmou que Farmanguinhos (Instituto de Tecnologia em Fármacos) produz há quase 20 anos a cloroquina 150 mg que atende o Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária, do Ministério da Saúde.
“A produção do medicamento vem sendo realizada conforme quantitativo e cronograma estabelecido pela pasta”, disse. Em 2022, foram entregues 1.424.000 unidades de cloroquina ao ministério, e mais 1.366.000 serão entregues até o fim do ano, segundo a Fiocruz. A distribuição do medicamento é uma responsabilidade do ministério, conforme a Fiocruz.
Sobre os medicamentos substitutos, recomendados pelo Ministério da Saúde, a Fiocruz afirmou que eles podem ser utilizados em caso de necessidade. “A administração desses medicamentos não traz prejuízo técnico para os pacientes. As gestantes também podem receber o tratamento alternativo. Cabe ao médico que acompanha a gestante avaliar a melhor terapêutica.”
O ministério disse que gestantes podem utilizar o tratamento alternativo, “sem prejuízo à saúde no tratamento de P. vivax”, mas fez uma ressalva: “O tratamento semanal durante toda a gestação e primeiro mês de lactação só pode ser realizado com o medicamento cloroquina.”