Foto: Anderson Coelho

Um pequeno risco marrom que rasga o verde da mata. É assim que uma pista de pouso construída no meio da floresta se parece quando vista por imagens de satélite. Lá embaixo, no chão da Amazônia, são estradinhas de às vezes meros 300 metros de extensão e uns 20 metros de largura, o suficiente para pousos e decolagens de aeronaves de pequeno porte.

Esses aviões, que pousam carregados de combustível e mantimentos, são peças-chave para compreender como garimpos do tamanho de dezenas de campos de futebol surgem em poucos meses no meio da maior floresta tropical do planeta. Esse é o começo de uma cadeia que termina em grandes mercados internacionais de ouro, com empresas globais de tecnologia na clientela.

Na Amazônia Legal, há 362 pistas de pouso e decolagem clandestinas — ou seja, sem registro na Agência Nacional de Aviação, a Anac —, em volta das quais há rastros de desmatamento por mineração de ouro. Mas o número mais do que triplica se considerarmos todas as pistas abertas sem autorização e registro na Amazônia Legal: 1.269 vias para pouso e decolagem. Esse número supera o de pistas registradas na região, que chegou a 1.26o em abril deste ano. Os dados foram consolidados em 1º de maio.

O levantamento inédito de pistas clandestinas na Amazônia é resultado de uma colaboração do Intercept com o Pulitzer Center e a organização não-governamental americana Earthrise Media, que reuniu os dados a partir de imagens de satélite da Amazônia Legal coletadas em 2021.

O número também inclui pistas encontradas na plataforma de mapas OpenStreetMap, pela ONG Instituto Socioambiental e por investigações policiais, além de estruturas identificadas visualmente ao longo da apuração. Consideramos para o número total todas as pistas que apresentaram indicação visual de que foram usadas em 2021 e 2022. Os dados foram analisados pelo Intercept em parceria com repórteres do jornal The New York Times, parceiro nesta publicação.

A demanda da mineração na Amazônia por transporte aéreo tem relação direta com a dificuldade de acesso aos locais onde são feitos os barrancos, como são chamados os garimpos. Uma viagem de estrada ou barco, que pode demorar dias ou semanas, é transformada em um trajeto de minutos ou um par de horas em pequenas aeronaves.

A Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, responsável por regular o setor no país, não parece disposta a fiscalizar as pistas irregulares. Até dezembro de 2021, o Código Brasileiro de Aeronáutica exigia que a construção de aeródromos demandava autorização prévia da agência, sob pena de multa – mas a agência pouco atuou para fazer valer a lei. De acordo com uma resposta que recebi em julho do ano passado, após um pedido feito por Lei de Acesso à Informação, a LAI, a Anac só emitiu seis multas por construção de pistas irregulares em todo país entre 2016 e 2021, nenhuma delas na Amazônia Legal.

Em nota enviada no início de julho, a Anac informou que recebeu 49 denúncias sobre pistas clandestinas, operadores de aeronaves e pilotos na área da Amazônia Legal entre 2018 e 2021, e mais nove nos primeiros seis meses de 2022. De acordo com a agência, todos os casos passaram por apuração. Porém, considerando a resposta sobre multas aplicadas que recebi via LAI, nenhum dos 49 casos de 2018 a 2021 resultou em punição. Questionada sobre esses dados, a Anac mudou de discurso. As denúncias apuradas, aí, não seriam apenas sobre pistas clandestinas, mas também de aeronaves e pilotos que operavam voos irregulares.

A medida provisória 1.089/2021 do governo Bolsonaro deixou a vida de donos de pistas clandestinas ainda mais fácil. Desde 29 de dezembro, a Anac foi liberada do fardo que não parecia disposta a carregar. O artigo que exigia a autorização prévia da agência para a construção de pistas de pouso foi revogado na MP. A medida virou lei com a aprovação do Congresso, em maio, e a sanção presidencial no mês seguinte.

A Anac diz que “a autorização prévia para construção de aeródromo de uso público e privado continuam a vigorar, de acordo com a Resolução nº 158, de 13 de julho de 2010, que dispõe sobre a autorização prévia para a construção de aeródromos e seu cadastramento junto à ANAC”. No entanto, a mesma nota deixa escapar como a legislação ficou mais frágil: “Eventual ajuste regulamentar decorrente da ausência de exigência legal será estudado e passará por todo o rito normativo adequado”.

A alteração na legislação não afetou a exigência de que os voos precisam ser regulados pela autoridade aeronáutica. Mas até nisso o governo deu um jeitinho. O governo retirou indefinidamente as restrições de pouso e decolagem de vias sem registro na Anac, um presente para quem utiliza pistas clandestinas na Amazônia Legal. A mudança havia sido aplicada em julho do ano passado, por causa da pandemia de covid-19, para facilitar o atendimento de saúde de comunidades indígenas e ribeirinhas localizadas em regiões afastadas. Agora, virou definitiva.

Para o governo Bolsonaro, aliado de primeira hora do garimpo ilegal, o acesso livre a pistas clandestinas na Amazônia promove “o fomento regional, a integração social, o atendimento humanitário, o acesso à saúde e o apoio a operações de segurança”, que “precisam ser mantidos independentemente do caráter excepcional”.

 

 

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