O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari (AM) evidenciou a dificuldade do governo federal em enfrentar a pesca ilegal, o contrabando de madeira, o garimpo e o tráfico de drogas na Amazônia. Em entrevista ao Congresso em Foco, o delegado federal Alexandre Saraiva conta que essa dificuldade não se dá por acaso: na atual gestão, a Polícia Federal (PF) foi alvo de aparelhamento para não atingir aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Saraiva é candidato a deputado federal pelo PSB do Rio de Janeiro e foi superintendente da PF no Amazonas e em Roraima. Perdeu o cargo em Manaus em 2020, quando deflagrou a Operação Handroantrus: uma ação conjunta da PF com outras agências de controle que resultou na maior apreensão de madeira da história do Brasil, um total de 43,7 mil toras transportadas entre Amazonas e Pará.
A apreensão provocou conflito com aliados do governo na Câmara e no Senado, que alegaram se tratar de uma apreensão autoritária e que atingiu madeireiros regulares. Telmário Mota (Pros-RR) se pronunciou na tribuna contra o delegado, afirmando que atacava madeireiros “por uma questão de viés ideológico e também no afã de buscar uma mídia”. O caso também resultou na demissão do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que saiu do governo logo após o Supremo Tribunal Federal investigá-lo por tentar comprometer a operação.
A operação deixou uma marca profunda tanto na carreira de Alexandre Saraiva quanto de Bruno Pereira, que também ajudou na investigação. Os dois foram retirados de seus cargos, e o delegado deixou de assumir chefias na PF. O aparato montado por ele durante seu exercício como superintendente no Amazonas foi desmontado na sequência. Essa retaliação, ele conta, é fruto de um aparelhamento da força policial por parte do governo. “Nós tínhamos um projeto de ataque ao crime organizado que estava funcionando muito bem, e isso incomodou. Quando incomodou, os criminosos tentaram resolver a situação na justiça. Perderam, e com isso tentaram chegar aos chefes pela política”, relatou.
Segundo ele, o primeiro órgão que teve seus quadros trocados para atender o interesse de aliados do governo não foi a PF, mas sim o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). “O Ibama foi aparelhado logo na sequencia da operação. Colocaram policiais militares na chefia de praticamente todas as superintendências. Não tenho nada contra policiais militares, mas puseram como superintendente do Amazonas um policial militar que nunca pisou na Amazônia”, disse Saraiva.
Em maio de 2021, a chefia do Ibama foi assumida por Luis Carlos Hiromi Nagao, tenente-coronel da Polícia Militar do estado de São Paulo.
Com os demais órgãos de fiscalização sob controle de aliados de Jair Bolsonaro, não demorou para chegar a vez da PF. “Depois do Ibama, foi a vez da Fundação Nacional do Índio (Funai) até que ele fez uma coisa que até então se achava impensável. Bolsonaro criou um precedente perigosíssimo: ele provou que é possível aparelhar a Polícia Federal”.
O principal sintoma desse aparelhamento é justamente a dificuldade por parte dos policiais em conseguir avançar com qualquer investigação que chegue a aliados ou membros do governo, com delegados recebendo ordem expressa de interromper a investigação e chefes sendo exonerados de seu cargo. “Eu tenho 18 anos de PF. Eu já critiquei governos anteriores, mas nunca recebi antes qualquer ligação mandando fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Nem eu e nem os demais delegados”, relembrou.
Saraiva também ganhou notoriedade por denunciar a atividade de parlamentares ligados ao governo por envolvimento com a extração ilegal de madeira na Amazônia. As denúncias chegaram a atingir a deputada Carla Zambelli (PL-SP), que anunciou no último dia 15 a abertura de um processo judicial contra o delegado, após este dar uma entrevista à Globo News onde se refere à deputada como “marginal” e integrante de uma “bancada do crime”.
Sobre o ocorrido, o delegado afirma não ter recebido qualquer notificação judicial ou intimação para comparecer em juízo. Na sua avaliação, o anúncio da deputada foi um blefe “Quem tem boca fala o que quer. Eu ainda estou esperando a intimação. Mas o máximo que ela vai fazer é reclamar na corregedoria da Polícia Federal. Se eu tivesse medo de processo eu não entraria para a polícia. Mais do que isso: eu estaria com medo se tivesse feito algo errado, mas só fiz o certo”.
O risco de um processo já era uma possibilidade levantada durante a entrevista onde acusou a parlamentar. A fala, porém, ainda é vista por ele como necessária. “Naquele dia eu estava especialmente indignado porque eu conhecia o Dom e o Bruno. Eu simplesmente falei o que todo mundo já sabe, todo mundo já sabe quem são essas figuras. Eu alertei a sociedade brasileira se mudar o governo, mas esse centrão vai continuar dominando a Amazônia. Por azar, como ninguém falou, eu falei”.