A melhora da pandemia e o aumento do trânsito na fronteira fizeram o número de venezuelanos buscando refúgio no Brasil voltar a acelerar. Os haitianos, outro grupo que vinha sendo importante no fluxo migratório, têm migrado menos para cá e voltaram a buscar os EUA como destino.
Segundo os números do Ministério da Justiça e da Polícia Federal compilados pelo Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra), em 2020, o número de solicitações de refúgio caiu para 28.899, sendo 61,9% (17.899) de venezuelanos e 22,8% (6.613) de haitianos.
No ano passado, com o arrefecimento da covid-19 e a reabertura das fronteiras terrestres, o número de pedidos subiu para 29.107, sendo 78,5% (22.856) da Venezuela e 2,89% (842) do Haiti.
De 2011 até 2015, os haitianos se revezavam com sírios, senegalesas e bengaleses na posição de principal grupo dentre os solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado, chegando a responder por um terço dos pedidos. De 2016 para cá, os venezuelanos assumiram o topo do ranking.
Parte da explicação deve-se à combinação de medidas restritivas e agravamento da crise econômica no Brasil. Haitianos passaram a se frustrar com o cenário diferente do de 2014 – quando o Brasil sediou a Copa do Mundo e a migração haitiana estava no auge. Após fugir da pior crise econômica da história do país, venezuelanos encontram alívio ao chegar aqui.
“Houve um pequeno crescimento. Não podemos dizer que o arrefecimento da pandemia é o único fator causal. Muitos podem estar se movimentando para trazer familiares que haviam ficado para trás”, afirma Leonardo Cavalcanti, coordenador do OBMigra. “Com cenário menos grave da covid-19, as pessoas tendem a se movimentar mais e as fronteiras ficam mais flexíveis.”
O aumento do número de venezuelanos no Brasil é um indicativo de que as condições na Venezuela continuam bastante desfavoráveis, afirma Lígia Bolívar, professora da Universidade Andrés Bello, em Caracas. “Até que não haja mudança importante nas condições socioeconômicas e políticas da Venezuela, isso continuará ocorrendo. A migração foi detida temporariamente pela pandemia, mas já vemos novamente um volume importante indo para outros países”, afirma. “Hoje há não apenas mais venezuelanos indo para o Brasil, mas também para os EUA.”
Apesar da redução da inflação – cuja taxa anual caiu de mais de 1.000.000% em 2018 para 686,4% em 2021, segundo o Banco Central da Venezuela, as condições de vida ainda estão longe de ser boas. “Não há crescimento [econômico], apenas redução do retrocesso. A situação que levou venezuelanos a começar migrar permanece. E, com maior flexibilidade [na fronteira] hoje, eles conseguem sair.”
Gabriel Lima, de 27 anos, queria sair da Venezuela há mais dois anos. Em dezembro, aproveitou a reabertura parcial da fronteira e levou sete dias de carona para ir de Tucupita, no norte do país, até Pacaraima, Roraima, divisa com a venezuelana Santa Elena Uairén e a porta de entrada mais comum de venezuelanos no Brasil.
Na Venezuela, onde vivia com a mulher, o filho de 1 ano, quatro irmãs, mãe, sogra e uma cunhada, ele não conseguia emprego. “Saía às 5h para procurar trabalho e voltava às 20h morto de fome, pedindo prato de comida na rua”, conta do pátio da Casa do Imigrante, onde está desde que chegou a São Paulo. “Prefiro ficar aqui, trabalhar no que conseguir e mandar R$ 500 por mês para a minha família. Isso dá US$ 100 e é suficiente para o supermercado do mês.”
Em busca de emprego com carteira assinada, ele ganha R$ 1.600 como ajudante de pedreiro. Na Venezuela, chegou a ganhar o equivalente a US$ 20 por mês trabalhando na padaria.
Seu grande objetivo é conseguir trazer toda a família. “Acha normal uma moça assim ser tão magra desse jeito?”, diz, mostrando foto da mulher com o filho no colo.
Ao seu lado, o colega Luis Alexander Guillen, de 49 anos, diz ter deixado para trás a esposa de 38 anos e um restaurante onde vendia prato feito. Chegou ao Brasil em agosto de 2021.
“Lá, no meu restaurante, eu ganhava entre US$ 15 e US$ 20 por semana. Aqui, como ajudante de pedreiro ganho isso em um dia”, diz. Aos sábados, Guillen faz bico em um bar no Brás que vende coxinha e cerveja. Consegue cerca de R$ 70 a cada vez que vai. “Não vim porque a covid-19 deu uma trégua. Vim por causa da crise em meu país”, diz. “Agora é conseguir trazer a minha esposa, que trabalha de doméstica, mas não consegue se manter.”
Na contramão do fluxo de venezuelanos, Cavalcanti argumenta que o de haitianos vem diminuindo pela conjuntura doméstica do Brasil e externa. “A migração haitiana teve força entre 2011 e 2015 e, então, deu uma arrefecida. O mercado de trabalho não tem mais condições de acolher todos, e o Brasil não é mais um destino óbvio, depois de um boom econômico marcado por Olimpíada e Copa do Mundo”, afirma. Coordenador da Missão Paz, em São Paulo, que recebe imigrantes e refugiados de todo o mundo, o padre Paolo Parise acredita que a mudança de governo nos Estados Unidos, com a eleição do democrata Joe Biden também contribuiu para isso.
“A chegada de Biden ao poder, em 2021, ajudou a difundir a ideia de que migrar para lá seria mais fácil”, conta. Isso acabou atraindo imigrantes interessados em ganhar em dólar e enviar mais remessas para casa.
“Na pandemia, vimos muitos haitianos deixando o Brasil e indo para os EUA. A mesma rota usada para vir para cá, do Equador para o Peru e do Peru para o Acre, foi usada para retornar”, continua. “Alguns estavam aqui havia apenas um mês, mas saíam assim que conseguiam o visto humanitário.”
Ele conta que haitianos que viviam no Brasil antes da pandemia vêm se desiludindo com a piora do cenário econômico. Como Sophonie David, de 25 anos., No Brasil desde 2018, a jovem nascida em Les Cayes reclama da economia “fraca” do Brasil hoje.
“Ganho de R$ 1.000 a R$ 1.200 por mês. Mas com isso hoje você compra arroz, feijão e acabou”, reclama, depois de retirar seu novo passaporte na sede da Missão Paz, em uma tarde quente de março.
Quando chegou a São Paulo, ela começou a trabalhar como camelô, atividade que seguiu até a pandemia, quando viu sua fonte de renda desaparecer. Hoje vende roupas em uma loja no Brás, a 25 quilômetros de Ermelino Matarazzo, onde mora. Ela conta que muitos amigos deixaram o Brasil para viver nos EUA ou mesmo no Canadá. Questionada se pretende fazer igual, ela olha de soslaio e responde, tímida: “Talvez eu também vá”.