O GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência indicou aval a garimpos de ouro em terras indígenas intocadas na Amazônia em caso de aprovação de uma nova lei que libere mineração nesses territórios.
No último dia 9, a Câmara dos Deputados aprovou urgência para votação de um projeto de lei apresentado pelo governo Jair Bolsonaro (PL), que libera mineração em terras indígenas.
A votação está prevista para abril e atropela comissões da Câmara. Patrocinam a ideia o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), o centrão e Bolsonaro.
O apontamento do GSI aparece em um documento enviado pelo ministro, general Augusto Heleno, ao STF (Supremo Tribunal Federal), em 22 de fevereiro. Duas ações –do PV e da Rede Sustentabilidade– contestam sete atos do general que liberaram o avanço de garimpos numa das regiões mais preservadas da Amazônia, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela.
A existência dos atos foi revelada pela Folha. Uma das autorizações permitia a exploração de nióbio e tântalo, além de ouro.
Após as reportagens, as ações foram protocoladas no STF e passaram a tramitar, com pedido de explicação enviado ao GSI pelo relator, ministro Nunes Marques. Diante da revelação feita pelo jornal e da posterior confirmação da Funai (Fundação Nacional do Índio) de que as autorizações passavam por duas terras indígenas, Heleno se viu obrigado a recuar e cassou os próprios atos.
Um documento produzido em 23 de dezembro pela Secretaria de Assuntos de Defesa e Segurança Nacional do GSI, em razão das reportagens, propôs a cassação de cada um dos sete atos de Heleno.
O documento levou em conta uma análise feita pela Funai, a pedido do GSI, que concluiu que pesquisas de ouro, nióbio e tântalo ocorreriam em duas terras indígenas no extremo noroeste do Amazonas, na região conhecida como Cabeça do Cachorro.
Foi com base nesse documento que Heleno cassou os próprios atos, referentes a uma exploração em áreas de 12,7 mil hectares da Amazônia. A porta de entrada para a Cabeça do Cachorro é São Gabriel da Cachoeira, a cidade mais indígena do Brasil.
O ministro do GSI é o responsável por essas autorizações por ser o secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional. Como as áreas estão na fronteira, cabe ao conselho emitir ou não o chamado assentimento prévio. Os processos são instruídos pela ANM (Agência Nacional de Mineração).
“O ato merece ser cassado, diante da impossibilidade de exploração mineral em terra indígena”, pontuou o GSI para seis dos sete atos de Heleno que validavam a exploração de ouro. O sétimo ato também incluía exploração em terra indígena, e deveria ser anulado por ter ignorado informações da Funai e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), segundo o GSI.
O documento do órgão da Presidência faz, então, ressalvas sobre a cassação desses atos: “O ato merece ser cassado, diante da impossibilidade de exploração mineral em terra indígena, relativo ao processo da ANM, até o advento de legislação específica, em atenção ao §1º, do art. 176, da Constituição Federal.”
É este um dos pontos da Constituição que o projeto de lei com tramitação urgente na Câmara quer regulamentar.
O parágrafo afirma que a exploração de garimpo em faixa de fronteira ou terras indígenas deve seguir condições específicas estabelecidas em lei.
O projeto estabelece ainda regras sobre como o Congresso autorizaria projetos de mineração em terras indígenas, sobre consulta às comunidades afetadas e sobre participação nos resultados das atividades, dentro do que prevê a Constituição num segundo ponto.
Como não há lei que regulamenta esses pontos, a mineração em terras indígenas é vedada.
Ao permitir avanço de garimpos na região da Cabeça do Cachorro, um ato inédito em pelo menos dez anos, Heleno atropelou a previsão da Constituição, pelo fato de ter autorizado exploração em terras indígenas.
Uma das reportagens publicadas pela Folha mostrou, em 17 de dezembro, que cinco das sete frentes autorizadas pelo general estavam dentro de trecho do Rio Negro que corta as terras Médio Rio Negro 1 e Médio Rio Negro 2. As áreas liberadas estavam em ilhas ou nas próprias águas do rio.
Nos dois espaços vivem 3.300 indígenas, segundo base de dados atualizada pelo ISA (Instituto Socioambiental). Eles são das etnias arapaso, baniwa, baré, dâw, desana, koripako, mirity-tapuya, pira-tapuya, tariana, tukano e yuhupde.
Diante da revelação, o GSI decidiu consultar a Funai, “em caráter de urgência”, sobre os indícios de que as áreas autorizadas integravam terras indígenas.
Em relação a seis processos, “a Funai informou que se situam no curso do Rio Negro e, pelas imagens satelitais, bem próximos ou até mesmo sobre ilhas fluviais desse rio”, afirmou o GSI no documento enviado ao STF.
“De acordo com o decreto que homologou a demarcação da terra Médio Rio Negro 1, as ilhas eventualmente existentes pertenceriam à referida terra”, afirmou a Funai, conforme o documento do GSI.
Um sétimo processo, que liberava pesquisa de ouro, nióbio e tântalo em área colada ao Parque Nacional do Pico da Neblina, “é confinante à área sob processo demarcatório”, conforme conclusão da Funai enviada ao GSI.
A terra em questão é a Cué-Cué/Marabitanas, com 1,8 mil indígenas, de nove etnias, conforme o ISA: arapaso, baniwa, baré, desana, koripako, pira-tapuya, tariana, tukano e warekena.
Levando em conta um raio de influência de dez quilômetros, como prevê uma portaria interministerial de 2015, o empreendimento de garimpo impactaria outras duas terras indígenas (Balaio e Médio Rio Negro 2), segundo a Funai.
O ICMBio informou ao GSI, também após a publicação das reportagens, que dois processos de mineração estavam na “projeção da zona de amortecimento” do Parque do Pico da Neblina. Assim, a ANM deveria consultar o órgão antes de permitir a exploração, conforme o ICMBio.
A Folha tentou obter uma cópia tanto do documento do GSI quanto do documento da Funai, mas os órgãos se recusaram a fornecer, inclusive via LAI (Lei de Acesso à Informação). As informações ficaram disponíveis a partir do momento em que o documento do GSI foi enviado ao STF.
O projeto de lei que libera a mineração em terras indígenas, sem ouvir os próprios indígenas, tem a oposição das principais associações representativas dessas comunidades; das principais empresas do agronegócio, bancos, universidades e sociedade civil; das principais empresas de mineração; e do CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos).