As pessoas refugiadas e migrantes da Venezuela no Brasil que participaram da estratégia de interiorização tem maior acesso ao mercado de trabalho e à educação, em comparação com a população que segue abrigada pela Operação Acolhida no Estado de Roraima.
Ao mesmo tempo, as questões de gênero, raça e etnia se mostraram estruturantes das desigualdades vividas no processo de interiorização, uma vez que as mulheres interiorizadas têm maior taxa de desocupação laboral que os homens e apresentam um rendimento médio menor, particularmente as mulheres negras.
Estas são algumas das conclusões da pesquisa “Limites e desafios à integração local de refugiadas, refugiados e pessoas migrantes da Venezuela interiorizadas durante a pandemia de Covid-19”, realizada pelo Acnur (Agência da ONU para Refugiados), a ONU Mulheres e UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas).
Conduzida pelo Governo Federal, a estratégia de interiorização pretende encontrar melhores oportunidades de integração socioeconômica para pessoas refugiadas e migrantes que buscam proteção e assistência no Brasil e que se encontram abrigadas pela Operação Acolhida – resposta governamental ao fluxo de pessoas venezuelanas para o país.
A adesão à estratégia é voluntária. Desde que foi lançada, em abril de 2018, a interiorização já transferiu cerca de 60 mil pessoas para mais de 730 municípios brasileiros nos 26 estados brasileiros e Distrito Federal.
A pesquisa foi executada pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), pelo IPEAD (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas Administrativas e Contábeis de Minas Gerais), com apoio da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Emprego e renda
A pesquisa revelou que a renda média mensal da população venezuelana interiorizada e ocupada acima de 18 anos de idade é de R$ 1.325,20, sendo ligeiramente superior ao salário-mínimo vigente no Brasil em 2021 e mais que o dobro dos rendimentos da população que segue abrigada pela Operação Acolhida, cujo valor médio é de R$ 594,70.
Mesmo em melhores condições salariais que a população abrigada, a população venezuelana realocada que está empregada ainda ganha cerca de metade da renda da população brasileira (R$ 2.433).
As desigualdades entre gênero acontecem em ambos os grupos. Entre as mulheres interiorizadas, a renda média é de R$ 1.043,30, inferior à média geral das pessoas interiorizadas.
Neste grupo, a desagregação por raça e cor revela uma maior disparidade entre homens brancos (que têm uma renda média de R$ 1.591,80) e mulheres negras (com renda média de R$ 1.041,60). No caso da população abrigada pela Operação Acolhida, a renda média dos homens é de R$ 628,00, enquanto a das mulheres chega a R$ 549,50.
Desafios
Embora a renda média entre pessoas interiorizadas seja maior do que entre abrigadas, ao se levar em conta o rendimento individual domiciliar per capita, ou seja, o rendimento de uma família dividido por todos os moradores do domicílio, a população venezuelana interiorizada ocupada se encontra em desvantagem em relação à média da população brasileira residente no país, com níveis salariais cerca de duas vezes inferiores.
Algo similar acontece com a população abrigada em Roraima, a qual se encontra em enorme desvantagem em termos do seu rendimento mensal individual e domiciliar per capita.
O nível salarial da população residente em Roraima é quase três vezes maior do que o rendimento médio da população abrigada. Essa diferença é ainda mais acentuada quando olhamos para o rendimento médio domiciliar per capita: 10 vezes superior ao da população abrigada.
O melhor acesso ao mercado de trabalho entre pessoas interiorizadas fica evidenciado pela pesquisa, uma vez que a taxa de desocupação entre os interiorizados e as interiorizadas chega a 17,8%, subindo para 30,7% na população abrigada – comparativamente, no Brasil, a taxa de desocupação é de 14,1%.
O padrão de diferenças por gênero se reflete também neste campo: a desocupação entre homens interiorizados é de aproximadamente 9%, chegando a 30% entre as mulheres. Tal padrão se repete na população abrigada, sendo que quase 34% das mulheres e aproximadamente 28% dos homens estão desempregados ou desocupados.
Moradia e tempo médio de desocupação
A pesquisa revelou também que a maioria absoluta das pessoas interiorizadas já mora em imóveis alugados (93,7%), com uma família média de 4,2 pessoas por domicílios (contra 3,3 pessoas da média brasileira). Entre a população desocupada, o tempo médio sem trabalhar após a interiorização é quase dois meses maior entre as mulheres (7,7 meses) em comparação com os homens (6 meses).
A pesquisa também revela que a maioria da população venezuelana interiorizada (96,2%) e abrigada em Roraima (98,8%) pretende permanecer no Brasil. A perspectiva otimista com o futuro no país para pessoas refugiadas é apontada por 75% das pessoas interiorizadas.
Acesso a serviços
No campo da educação, a pesquisa revelou melhores condições de inserção escolar para crianças refugiadas e migrantes interiorizadas pela Operação Acolhida, especificamente entre menores de 18 anos de idade.
De acordo com as pessoas entrevistadas, 67,6% das meninas e meninos deste grupo encontram-se matriculadas em escolas e creches nas cidades de destino. Entre a população abrigada em Boa Vista, 41,3% dos filhos e filhas menores de 18 anos possuem matrículas em escolas ou creches da cidade.
A maioria das pessoas interiorizadas (68,3%) compreende bem ou perfeitamente a língua portuguesa. Entre as pessoas abrigadas, identifica-se diferença importante no nível de compreensão do português em relação à população interiorizada. A grande maioria tem alguma dificuldade de compreensão (65%), independente do sexo.
Em relação à saúde das mulheres, a pesquisa revelou que a cobertura do acompanhamento pré-natal pelas famílias é bastante expressiva, tanto entre as interiorizadas quanto entre abrigadas. Foi reportado acompanhamento pré-natal para 88,2% dos filhos e filhas de pais e mães venezuelanas interiorizadas e para 85,2%, no caso de pai ou mãe em situação de abrigamento em Boa Vista.
Em relação à intenção da gravidez, entre as mulheres interiorizadas que tiveram filhos desde que chegaram ao Brasil, 38% queriam engravidar naquele momento, enquanto 33,6% queriam esperar um pouco mais e 28,4% não tinham a intenção de engravidar.
A pesquisa também revelou que a imensa maioria da população venezuelana no Brasil possui o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), com diferença pouco significativa por gênero e entre a população abrigada (95%) e interiorizada (93%).
Já em relação ao acesso ao CadÚnico ou registro no CRAS, os dados revelam que praticamente metade das pessoas interiorizadas não possui esse registro (49%). Em relação às pessoas abrigadas, esse número é ainda menor (37%).
Além disso, 34,4% das pessoas interiorizadas e quase 82% das abrigadas reportaram não possuir conta bancária no Brasil. Entre as mulheres, a participação daquelas que têm conta bancária é bem inferior à dos homens, em ambas as populações.
Expansão da estratégia de interiorização
Os dados quantitativos da pesquisa “Limites e desafios à integração local de refugiadas, refugiados e pessoas migrantes da Venezuela interiorizadas durante a pandemia de Covid-19” revelam que há grande potencial de expansão da estratégia de interiorização junto à população abrigada em Roraima, uma vez que 76,2% dos abrigados têm interesse em sair do estado e 59,3% já realizaram algum cadastro para participar da estratégia.
A pesquisa também ressalta a relevância do papel dos estados receptores no processo de reconhecimento dos certificados de conclusão e de continuação dos estudos, bem como de estratégias de aprimoramento e capacitação da mão-de-obra via cursos técnicos e profissionalizantes, além do ingresso e permanência no parque universitário brasileiro.
A participação significativa de pessoas com ensino superior aponta, finalmente, para a centralidade do tema da revalidação de diplomas. Como recomendação preliminar, a pesquisa sugere reforçar e complementar as políticas públicas às dinâmicas proteladas de deslocamento e às fragilidades e heterogeneidade das pessoas deslocadas e das comunidades de acolhida.
Os dados da pesquisa procuram ajudar a suprir o déficit informacional no campo da pós-interiorização e melhorar o impacto nas comunidades de acolhimento. Com isso, permitirá informar, com base em evidências, o processo de formulação de políticas públicas em nível nacional e regional.
De um modo geral, e ainda inicial, os dados apontam para a necessidade de planejamento de políticas públicas de médio e longo prazo que apoiem o processo de integração social e inclusão econômica contínua da população venezuelana no Brasil, bem como de estratégias locais e regionais de apoio que possam fortalecer os vínculos, no tempo, entre sociedade de recepção e as pessoas venezuelanas interiorizadas.
Os dados corroboram a importância de se enfatizar uma política de integração baseada na dispersão territorial, já que parte da população venezuelana manifesta interesse na estratégia de realocação voluntária.