“Há casos confirmados de contaminação em área em 13 das 37 regiões da Terra Indígena Yanomami. Nessas aldeias, o isolamento social entre os moradores é impraticável, consequentemente, é possível que cerca de 10.800 Yanomami e Ye’kwana já estejam expostos ao novo coronavírus, em um universo de cerca de 27 mil pessoas – mais de um terço da população total”. O alerta é da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana (YY), formada por pesquisadores que lutam pela garantia dos direitos territoriais, culturais e políticos desses povos. A organização, que denuncia uma política deliberada de subnotificação dos óbitos pela doença, afirma que já são 17 indígenas mortos pela Covid-19.
Desde abril, foram registrados oficialmente somente seis óbitos, ou seja, uma taxa de letalidade de 0,9%, muito rara no planeta e desconhecida na América do Sul, a não ser em um país de registro sanitário tão duvidoso quanto a Venezuela (0,8%)”, afirma o coletivo de pesquisadores e apoiadores da causa Yanomami e Ye’kwana.
Conforme ressalta a rede, das 17 mortes, oito são óbitos confirmados e nove suspeitos (sem investigação oficial). “Esse levantamento independente, evidencia uma taxa de letalidade menos inverossímil (2,58%), pouco inferior à do Brasil (3,1%). A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entretanto, não contabilizou até agora as mortes registradas pela Rede Pró-YY e muitos outros óbitos suspeitos ainda em investigação que ocorreram em cidades e na terra Yanomami, desde o início da pandemia”.
Entre os casos não contabilizados pela Sesai está o mais recente, o de um recém-nascido Yanomami em 18 de agosto. O bebê, que tinha cinco meses e vivia em uma aldeia na região do Marauiá, Amazonas, também estava com malária. Segundo a rede, a criança foi levada pela família a Santa Isabel do Rio Negro. Ao retornar à comunidade, todos começaram a ter tosse e dores no peito. O bebê passou a respirar com dificuldade. Quando ele e outras quatro pessoas foram testadas para Covid-19, todos os resultados deram positivo. “Nessa região muitos são os sintomáticos, mas não há testes suficientes. Essa morte não entrou nas estatísticas oficiais da Sesai, apesar do resultado positivo para Covid-19”, destacam.
Os pesquisadores ainda apuraram que no Marauiá, onde vivem mais de 2.500 pessoas, ou cerca de 10% da população da TIY, foram realizados pela Sesai apenas quatro testes rápidos de Covid-19, todos positivos. Outros 30 testes foram depois realizados pela Secretaria Municipal de Saúde de Santa Isabel do Rio Negro, município mais próximo das comunidades, todos também positivos. “Foram também observados muitos sintomáticos em diversas comunidades da região. Neste contexto, foram relatados pelas lideranças indígenas quatro óbitos suspeitos de Covid-19 nos meses de julho e agosto, dos quais três estão associados à debilidade física decorrente de infecção recente por malária, doença endêmica na região”.
Falta de testes
Diante da falta de testes, os indígenas estão totalmente desamparados e sem saber do que estão morrendo, como relata um Yanomami do Marauiá, agente indígena de saúde, em mensagem enviada em português no dia 31 de julho à Rede. “No rio Marauiá, aqui embaixo, tá tendo muito virose que é forte e até hoje tá apresentando também coisa de Covid-19, essas coisas aí. Eu estou maior preocupação por causa disso, porque já foi três óbitos das pessoas né, em três comunidades. Isso é meu preocupação grande que tá acontecendo né. Como hoje tá iniciando de esse falecimento dos nossos parceiros, parente quer dizer, nossos parente daqui do rio Marauiá, eu fico muito triste. Não era para a gente tá morrendo disso, por causa de doença forte né. Então, eu digo: é pra Sesai de Boa Vista tá mandando teste de Covid-19, para tá mandando também, para nós aqui do rio Marauiá, porque até hoje não está chegando teste rápido de Covid-19”.
Até o momento, nenhum óbito de Covid-19 das comunidades da região do Marauiá entrou nas estatísticas oficiais da Sesai.
Outra situação invisibilizada pelo órgão federal de saúde é o caso de uma jovem Yanomami, grávida de sete meses, que foi removida, para o Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, na capital Boa Vista. De uma aldeia na região do rio Catrimani, Roraima, a mulher chegou fraca e com muita falta de ar, acompanhada do marido. Após testar positivo para Covid-19, ela deu à luz em 28 de abril e o bebê foi imediatamente encaminhado à UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), mas morreu logo depois por complicações e dificuldades respiratórias. O corpo da criança foi sepultado em Boa Vista, seguindo protocolos de biossegurança, no entanto essa morte não entrou nos registros da Sesai, nem sequer como óbito suspeito de Covid-19.
Um relato do pai do bebê, na língua Yanomae (subgrupo Yanomami), que foi registrado e traduzido pela Rede Pró-YY, revela a gravidade do caso. “Depois que a Zita Rosinete teve febre, no dia seguinte, caminhamos até o posto de saúde. A Rosinete estava muito mal, desmaiou três vezes na Missão. Ela estava muito fraca e com muita febre na Missão Catrimani. No dia 27 de abril, à tarde, fomos removidos para Boa Vista. Chegamos em Boa Vista quase à noite e fomos para a maternidade. Ela estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! Fizemos exame no dia 28 de abril e depois de cinco dias chegou o resultado positivo para Covid-19. Ela desmaiou no hospital e eu fiquei segurando-a de novo. Meu filho morreu. No dia 28 mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à noite morreu. Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: “Levem ao hospital, à UTI”. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste! Eu estou triste ainda. O médico não disse porque ele morreu. Ele só me perguntou: “Ei, você é papai?” “Sim, eu sou papai.” “Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu”.
Malária
Outra situação agravante é o ocultamento pela Sesai do diagnóstico das mortes atrás de comorbidades, que, entre a piores está a malária, propagada, principalmente, na área indígena pelos garimpos ilegais desde 2015. Segundo o monitoramento da Rede Pró-YY, óbitos de pessoas com registro de infecção por malária em regiões onde a Covid-19 já se alastrou, não estão sendo investigados pela Sesai. Entre os 17 óbitos confirmados e suspeitos, contabilizados pela rede, oito estavam com malária, quatro confirmados e quatro suspeitos. Dos nove óbitos suspeitos, cinco tinham comorbidades conhecidas, ou seja, a contaminação pela Covid-19 agravou o quadro clínico dessas pessoas, levando-as à morte.
Um exemplo desses casos é de uma adolescente Yanomami, de 14 anos, que debilitada pela malária, em julho, morreu com falta de ar em sua aldeia na região do rio Mucajaí, umas das localidades mais afetadas pelo garimpo ilegal, que avança sobre as florestas, rios e comunidades indígenas. “Antes eu pensei que ela só tivesse malária. Eu pensei isso antes, mas agora apareceram os rastros do comedor de coração, do comedor de pulmão [Covid-19]. Então foi o rastro disso [que matou minha irmã]”, diz trecho do relato da irmã da adolescente falecida, registrado na língua Yanomami e traduzido pela rede.
A morte dessa adolescente também não entrou nas estatísticas oficiais da Sesai, apesar da clareza de seu quadro clínico. “Além de trazer a Covid-19 para dentro do território, as áreas de garimpo e os próprios garimpeiros são também vetores de transmissão da malária. Nos últimos anos, essa doença tem se alastrado de forma descontrolada na Terra Indígena Yanomami e os altos índices da malária se tornam ainda mais alarmantes no contexto da pandemia, uma vez que é uma comorbidade que pode agravar o quadro clínico de uma pessoa com Covid-19”, destaca.
Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2014 foram registrados 2.896 casos de malária na terra yanomami e cinco anos depois, em 2019, 16.613, um aumento de 473%. “Em pleno estado de calamidade devido à pandemia, o garimpo ilegal está mais forte do que nunca. As organizações indígenas yanomami e ye’kwana estimam a presença de mais de 20 mil garimpeiros na TI Yanomami”, afirma a Rede.
A Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana adverte ainda que a política de subnotificação dos óbitos de Covid-19, seja por mera ausência de registro, falta de teste ou ocultando os óbitos atrás de comorbidades, cria uma equivocada impressão de baixa letalidade da doença entre os Yanomami e Ye’kwana. “Forja-se, assim, um falso cenário de controle do avanço do novo coronavírus na Terra Indígena Yanomami. Enquanto isso, a transmissão comunitária está, após cinco meses, totalmente fora de controle nas comunidades indígenas e as autoridades sanitárias parecem se dedicar ao mascaramento de sua negligência, sendo esse discurso utilizado, inclusive, como argumento frente ao Supremo Tribunal Federal como forma de negar a gravidade do avanço da Covid-19 e a alta taxa de letalidade entre a população indígena no Brasil”, denuncia a organização.